Se alguma vez entrou num café, supermercado ou em qualquer outro estabelecimento comercial onde viu sapos de louça à porta, saiba que quem os pôs ali quer passar a mensagem de que as pessoas de etnia cigana não são bem-vindas. É sobre esse comportamento discriminatório que fala a curta-metragem de Leonor Teles, ‘Balada de um Batráquio’. Falámos com ela dias antes de partir para a Berlinale (Festival Internacional de Cinema de Berlim), onde acabaria por ser premiada com o Urso de Ouro para melhor curta-metragem, tornando-se, aos 23 anos, a mais jovem realizadora de sempre a conquistar o ambicionado prémio.
Natural de Vila Franca de Xira, Leonor começou bem: há 3 anos, a sua primeira curta, ‘Rhoma Acans’, uma visão sobre raparigas de etnia cigana, ganhou o prémio Take One do Festival Internacional Curtas Vila do Conde e uma menção honrosa no Indie Lisboa. Licenciou-se em Cinema com especialização em imagem, na Escola Superior de Teatro e Cinema e, em dezembro passado, concluiu o mestrado em Audiovisual e Multimédia, na Escola Superior de Comunicação Social.
Porque se lembrou de falar da comunidade cigana, nos seus filmes?
Sou meia cigana, pelo lado da família do meu pai. Mas, apesar de não ter crescido na comunidade, sempre me relacionei com a minha família cigana. O ‘Rhoma Acans’ foi sempre um filme que tive na cabeça – tinha curiosidade em saber como teria sido a minha vida se lá tivesse vivido, se o meu pai não tivesse casado com a minha mãe. Esse foi o mote principal. A ‘Balada de um Batráquio’ surgiu de uma maneira muito simples e engraçada. Estava com os produtores do filme, a trabalhar num outro projeto; entrámos num restaurante que tinha um sapo de loiça à entrada. Contei-lhes o que significava e uma série de peripécias em relação àquela situação. Eles acharam muito curioso, ficaram com a pulga atrás da orelha e começaram a insistir para eu pensar num filme relacionado com aquilo. Ainda andei 3 ou 4 meses a achar que estavam a brincar comigo, que era um filme parvo que não ia interessar a ninguém. Mas depois percebi que estavam a falar a sério e comecei a pensar como fazer um filme com pés e cabeça sobre aquilo.
E como é que se faz uma coisa com pés e cabeça?
O processo de rodagem acabou por ser bastante longo e faseado. Começamos a filmar em outubro de 2014, voltámos a filmar na primavera de 2015 e mais uma vez em setembro. Não é um processo documental típico; acaba por ser bastante construído e estar num limbo que não permite chamar-lhe documentário, no sentido tradicional. Também tem imagens de arquivo. Mas se, por um lado, trabalha com a realidade e podemos dizer que é um documentário, por outro não a aborda da maneira típica: não há entrevistas, é mais interventivo. É um filme bastante simples e também me parece ser essa a graça dele.
Decidiu filmá-lo em Super 8. É um dos seus formatos de eleição?
Acho que a melhor coisa que fiz foi filmar nesse formato, que é incrível. É um formato tão tosco que se presta ao sentido de uma temática tão tosca e tola como esta. Se pudesse filmava sempre em película. Vim de fotografia, por isso não consigo desligar-me da parte visual.
Vamos poder ver o Balada de um Batráquio nos cinemas portugueses?
Claro que sim! Vamos ver como vai ser o percurso internacional do filme. No caso das curtas-metragens, é difícil terem estreia comercial. Mas já aconteceu curtas-metragens portuguesas estrearem juntamente com uma longa, em cinema, depois de fazerem o percurso nos festivais nacionais e internacionais.
Quando fez o ‘Rhoma Acans’, o que descobriu sobre a comunidade cigana?
Sobretudo para as mulheres, ainda é uma comunidade muito fechada e machista. A partir do momento em que as raparigas têm de sair da escola, aos 13, 14 anos, para casarem e engravidarem, deixam de ter opção e oportunidades.
Foi complicado fazer os primeiros contactos para filmar? Foi difícil criar empatia?
Não foi muito difícil. Começámos por explicar o que estávamos ali a fazer, fizemos por merecer a confiança deles. Fizemos várias visitas antes, entrámos em contacto através da escola, em Vialonga, onde as raparigas estudavam e, logo aí, a abertura foi um bocadinho maior. O mais difícil foi que estivessem à vontade para falarem comigo. Mas a partir do momento em que fomos honestos, com insistência, lá o conseguimos. Para criarmos essa empatia, é preciso acreditarmos verdadeiramente no que estamos a fazer, que vale a pena. E é preciso acreditar genuinamente nas pessoas que estamos a filmar – comigo, pelo menos é assim. É o meu protagonista que está à frente da câmara e tenho que me esforçar ao máximo para merecer a sua confiança e para que essa pessoa se ‘dispa’ perante a câmara. E, nesse aspeto, cria-se mesmo uma relação de amizade, porque só assim é que ganha uma base de confiança. Mantive contacto com as raparigas do ‘Rhoma’ até a protagonista, a Joaquina, casar e ir viver para o Alentejo.
A comunidade cigana continua a ser uma das que mais enfrenta xenofobia, em Portugal?
Os ciganos são os últimos da cadeia alimentar. O ‘Balada de um Batráquio’ revela esse problema dos sapos, tenta expô-lo, fazer alguma coisa contra isso, de certa forma, mas a questão da xenofobia é uma conclusão que têm de ser os espetadores a retirar, ou não, do filme. Mas continua a haver em Portugal muita gente que não pode com ciganos. Os sapos são só um pequeno exemplo de comportamentos que ainda se mantêm.
É preciso a sociedade fazer um esforço maior pela integração? A possibilidade de as raparigas ciganas estudarem até mais tarde ajudaria nisso?
Claro. A formação na escola abre muito os horizontes. Mas a maioria das raparigas nem sequer têm oportunidade de estudar até aos 18 anos, que é a idade legal, e de escolherem entre manter a tradição ou estudarem, terem o seu emprego e liberdade, sem deixarem por isso de ser ciganas. Desde que nascem ouvem a mensagem de terem que casar, ter filhos e cuidar da casa. Tem que existir um trabalho de ambas as partes: não só uma abertura maior da comunidade cigana, como também do resto da sociedade no sentido de tentar compreender e, sobretudo, de não desistir dela. Quando deixam de estudar, muitas raparigas são sinalizadas, o caso vai a tribunal mas não acontece nada porque o juiz alega “é a cultura, a tradição”. Então, mas a escola é obrigatória para todos ou não?! Ninguém é menos cigano por estudar.
Sente que é uma espécie de missão, fazer estes filmes?
Não tenho um sentido de missão; tenho é um sentido de urgência em falar sobre isto! Não digo que uma parte de mim não quisesse melhorar um pouco a situação, mas a verdade é que posso fazer pouco. Mostrei o ‘Rhoma’ à protagonista do filme, a Joaquina. Se surtiu algum efeito na cabeça dela, não faço ideia. Seria muito ingénuo pensar que os meus filmes têm o poder de mudar alguma coisa. Agora o ‘Balada de um Batráquio’ vai seguir a sua vida. Se mudar alguma coisa, ótimo; se não mudar, não mudou. E se calhar foi pelo facto de eu ter sentido que não consegui mudar nada com o ‘Rhoma’ que fiz o ‘Balada’. Mas desta vez não apresentei só um problema, tentei apresentar uma solução.
O que a levou a escolher o cinema?
Queria ter ido para a Força Aérea mas no 12º ano comecei a mudar de ideias. Se entrasse, só podia sair de lá aos 30 e isso assustou-me um bocado. Já nessa altura gostava muito de fotografia, depois conheci o cinema e a fotografia para cinema, mas foi durante o curso que me apercebi que era mesmo isto que queria fazer. Foi um tiro certeiro.
Mas tem outras paixões, como o desporto…
Joguei Futebol de 11, depois passei para o Futsal, onde fui federada, mas deixei de jogar no último ano de faculdade porque também comecei a trabalhar. Hoje trabalho como freelancer em alguns projetos e com produtoras como a Kinema ou ‘Uma Pedra no Sapato’, que também produz os meus filmes.
Já está a pensar num próximo projeto?
O que quero fazer brevemente não tem a ver com o mesmo tema. Não quero mais rótulos – ‘a realizadora dos ciganos’… Não sou nada de missões etnográficas e antropológicas. Fazer cinema é muito difícil e caro e, se partimos para ele, tem que ser uma vontade visceral, que vem de dentro e muito forte. Só quando tenho este tipo de vontades consigo começar a desenvolver os projetos e a escrever. O novo projeto é passado em Vila Franca e começou com uma personagem e um sítio, o rio Tejo e toda a zona ribeirinha. O resto, logo veremos.