Sonhava ter um casamento igual ao exemplo que tinha em casa. Os pais eram companheiros, cúmplices e entre os dois havia respeito. “Susana”, nome fictício, não tinha razões para duvidar que o amor faria parte da sua vida adulta. Na adolescência conheceu aquele que viria a ser o seu marido e não só. Também o seu agressor. A pessoa que fez de tudo para a humilhar, maltratar, rebaixar e desrespeitar. “Susana” diz que não soube interpretar os sinais. Era muito nova. Quando começaram a namorar ele estava num processo de desintoxicação por consumo de drogas. E ela tornou-se a pessoa mais presente.
“Quando começamos a gostar tentamos lutar contra tudo. Procurei ajudá-lo a recuperar ao máximo, começámos a passar todas as horas do dia juntos e eu assumi o papel de mãe dele. Agora, fazendo uma retrospetiva, acho que já começou mal porque ele começou a ficar muito dependente de mim.”
O processo em que o namorado se encontrava fez com que “Susana” quisesse de certa forma cuidar dele. Quem ama cuida, a verdade é essa. Sabia do seu passado, das vezes em que ele viu a mãe ser espancada pelo pai, das noites que dormiu na rua à chuva e ao frio quando tinha de fugir de casa devido aos maus-tratos. Era o primeiro a condenar o pai por todo o sofrimento que causou à família. Pouco tempo depois fez o mesmo. O relato dos primeiros tempos poderia ser descrito por quase todas as vítimas de violência doméstica.
“No princípio estava tudo muito bem com o comportamento dele. Era uma pessoa serena, sempre com atenção. Queria saber se não me faltava nada, se estava bem, ajudava-me em tudo. Para mim era perfeito, na altura era perfeito.”
Decidiram comprar casa e pouco depois casaram. E em menos tempo ainda a perfeição desapareceu. Sem razão, sem motivo aparente. O comportamento começou a mudar. O cuidado, o carinho e a atenção deram lugar a atitudes e palavras que “Susana” não reconhecia vindas da pessoa que amava e que tinha escolhido para a sua vida. Nesta altura já tinha dado três passos importantes. Aceitar ter uma relação com alguém que no passado teve problemas familiares e de dependências, casar e ter um filho. A gravidez, que acreditava seria um dos momentos mais bonitos da sua vida, tornou-se um inferno.
“Eu engravidei e logo aí começaram aquelas alterações de humor. Ele demonstrava que era uma coisa que ele queria muito mas num momento estava bem e a seguir já estava alterado e a dizer não vales nada, estás sempre cansada. Aquelas coisas própria da gravidez ele não aceitava nada. Tinha de estar sempre bem, disposta a fazer tudo o que ele quisesse senão já não prestava.”
As exigências não passavam apenas pela comida, por cuidar da roupa ou da casa. As exigências obrigavam a muito mais. Depois do nascimento do filho, “Susana” tinha de ser mãe a tempo inteiro, dona de casa e, como ele costumava dizer, “tens a obrigação de ser minha mulher”. As relações sexuais tinham de acontecer sempre que o marido quisesse. E ela nem sempre queria.
“Ele disse-me: enquanto eu estiver aqui em casa vais ser minha mulher até ao último dia. Ele obrigava-me a manter relações e ameaçava-me que não me deixava em paz e que quem sofria era o meu filho. Era com o meu consentimento mas contra a minha vontade, ele sabia que eu não queria, estava ali simplesmente.”
As ameaças era constantes e o marido passou a usar o filho para atingi-la. Numas férias com amigos, “Susana” levantou-se da mesa para aquecer o leite do filho e quando regressou percebeu que toda a gente estava a tentar ajudar o bebé que se tinha engasgado, menos o marido. Aí ela percebeu que se ele tivesse de usar o filho para a afetar era capaz de o fazer. E fê-lo naquela altura porquê? Segundo “Susana” porque durante 3 dias não tiveram relações sexuais. Com medo do que poderia acontecer, ia-se submetendo.
“Sentia-me lixo. Não me sentia gente. Sentia-me suja, sentia vergonha do que estava fazer, sentia nojo de mim própria. Cheguei a sentir que não era gente, cheguei a sentir que não estava cá a fazer nada.”
O terror que viveu em casa, as constantes ameaças, o abuso sexual, o perigo constante em que o filho se encontrava levaram-na a sair daquela situação. Mas por pouco tempo. Vieram as promessas, as juras de amor, os pedidos de desculpa, a pena que ainda sentia por ele e por tudo isso voltou a aceitá-lo em casa. Desta vez, o quadro de violência e humilhação e abuso foi ainda pior. O marido controlava o Facebook, o telemóvel, não a deixava descansar em casa, não dava atenção ao filho e como sempre exigia que ela se submetesse à intimidade quando ele queria. Até ao dia em que “Susana” se apercebeu de que já não gostava dele. Decidiu pedir o divórcio e deu início a uma guerra. Ele recusou-se a sair de casa, ameaçava-a de morte, ela encontrou os vidros do carro partidos, os eletrodomésticos estragados e até amoníaco no líquido das lentes de contacto. O ardor insuportável levou-a diretamente ao hospital com o risco de ficar com lesões graves na vista para o resto da vida. Ela manteve o “basta”.
Depois de ter apresentado queixa à GNR, o tribunal decidiu mantê-lo afastado dela com pulseira eletrónica. Falta a sentença relativa ao processo por violência doméstica.
Ela ainda teme o que ele possa vir a fazer. As memórias sabe que nunca vai conseguir apagá-las. De cada vez que alguém a questiona sobre o que a levou a ser vítima de violência é como se carregassem num botão que a faz recuar no tempo e reviver todo o sofrimento.
“As pessoas questionam por que é que estiveste tanto tempo? Não tinhas necessidade de estar tanto tempo. Chegaram a dizer-me: ‘passaste por isso tudo porque quiseste’. Ninguém quer isto, ninguém quer mesmo e as pessoas não imaginam o quanto dói ainda nos estarem a recriminar depois de tudo o que já passámos.”