É um principais rostos do projecto Porta dos Fundos e espante-se quem acredita que Gregorio Duvivier leva o humor de ânimo leve. Numa entrevista exclusiva à ACTIVA, Gregorio revelou que o humor deve ser levado tão a sério quanto o jornalismo e que não deve existir um limite para as piadas.
Gregorio acredita que “não há nada mais bonito que uma piada”, que essa “piada deve ser levada a sério” e que o comentário que alguns humoristas fazem quando vêem que uma piada não está a ser bem recebida pelo público – “isso é só um a piada” – é desvalorizar a profissão de humorista: “os limites da sociedade devem-se estender ao humor”.
Sobre o ‘Porta’, que neste regresso conta com César Mourão no palco, Duvivier diz que não são “escravos do sucesso”, que “o Youtube é a nova novela das 8”, e que o “humor é sempre político”. Falámos com a pessoa que saiu da psicanálise por “não ter assunto” e que acha que o “humor é uma terapia gratuita”.
Leia a entrevista de Gregorio Duvivier para a ACTIVA:
Cada vez mais se fala de que deve existir um limite ao humor ou que há temas, como a morte e a doença, que não são passíveis de ser alvo de humor. Concordas com isso?
Não, acho que todo os assuntos podem ser tema. Não há nenhum tema proibido, pelo contrário, os temas mais difíceis são os mais atraentes, como a morte, a religião, os tabus, o sexo… É onde mora a proibição que mora o humor. No entanto, não acho que isso significa que o humorista pode dizer tudo e não ser responsabilizado. Apesar de não haver nenhuma proibição ou nenhum tema proibido, a abordagem pode ser muito indelicada e acho ruim quando um humorista não tem empatia pelo sofrimento. Existem abordagens para específicos temas que são indelicadas e grosseiras. O que não acho é que sejam crimes. São mais um erro de etiqueta. Um humorista, acima de qualquer um, tem de ser responsabilizado, assim como um jornalista. Sou a favor total da liberdade de imprensa, porém, um jornalista que calúnia ou que difama, tem de responder por isso, e o humorista a mesma coisa. Não acredito que o humor seja um “salvoconducto”, os limites da sociedade têm de ser aplicados ao humor, e por isso a calúnia e a difamação, a ofensa e o racismo, tudo o que é crime na vida, é crime também no humor. Sou a favor que se leve o humor a sério, não há nada mais bonito e importante que uma piada. Acredito que a piada é o que me faz viver, é o que paga as minhas contas, então desprezá-la e achar que uma piada não deve ser passível de ser levada a sério, dizercomo alguns humoristas “ah isso é só uma piada” ou “isso é só uma anedota”, é tirar o respeito e o valor da própria profissão.
Humor e política, são uma boa combinação?
Acho que é fundamental que os humoristas tenham a coragem de encarar a política. É um dos temas mais difíceis, porque você tem fortes chances de perder a plateia. A política, assim como o futebol e a religião, mexe com as suas convicções mais íntimas e muitas vezes profundas. No Brasil, hoje vivemos num momento de ódio profundo, então é difícil falar de política sem ser odiado por, pelo menos, metade da plateia. Por isso mesmo, é que o humorista tem de falar de política. Uma das funções do humor é romper as barreiras do ódio e gerar empatia. A boa piada é empática. Quando você ri, você está entendendo um pouco o outro lado que não é o seu. Quando você ri, alguma verdade está a ser revelada. Se um jornalista diz que o rei está nu, o humorista vai dizer que o pau dele é pequeno. A tarefa do humor é ir um passo além, não só desvenda a verdade, ela também a explícita, torna a verdade ridícula, e isso é fundamental, que não haja uma verdade absoluta. Tudo é passível de ser ridículo.
O Porta dos Fundos nasceu no YouTube, mas agora também já o podemos ver na televisão e cinema. Achas que foi uma transição natural passar para outras plataformas?
Cada vez mais o YouTube é visto enquanto audiovisual como um todo e essa transição vai-se dar cada vez mais. As pessoas vão ser cada vez menos pensadas como um artista do YouTube, mas sim como um artista do audiovisual. Hoje, assistimos a mais coisas na internet do que na televisão ou no cinema. Um vídeo do Porta tem por vezes 20 milhões de visualizações, que é mais do que a novela das oito [horário nobre no Brasil]. Então, vemos cada vez mais a internet, não como uma microplataforma, mas somos o horário nobre. É algo que ocupa um espaço central. Antigamente, pensava-se a internet como uma plataforma totalmente distinta, com outra linguagem, com outro público. Hoje em dia, cada vez mais, o público da internet é o mesmo do cinema, não é mais o adolescente: tem 30, 40, 60 anos de idade, é homem, é mulher. Por isso, com a popularização da internet junto de todas as idades e classes sociais, o público da internet tornou-se o mesmo que o do cinema. Portanto, é natural que exista um intercâmbio entre as plataformas, não só do YouTube para o cinema, mas vice-versa. Vejo muitos artistas de cinema e televisão estrear canais no YouTube e acho isso muito saudável.
Qual é o processo que existe desde a ideia inicial até que o vídeo seja carregado no YouTube?
Em geral, nós escrevemos a piada em casa e levamos o texto para a reunião e mostramos ao grupo e debatemos: ou é aceite ou desaprovado, dependendo do texto. E isso é uma das coisas muito saudáveis do Porta, aprender a ouvir um ‘não’ em relação ao seu texto, aprender a ser criticado. A maioria dos textos não é aprovada. Todas as semanas, escrevemos cerca de 10 ou 12 textos, cada um escreve uns três, nós somos quatro roteiristas, e, desses 12, escolhemos só três. A maioria dos textos são jogados fora, e isso para mim é “aprendilado”, não se apegar ao que a gente escreve. Essa é a primeira etapa, a segunda, após o texto ser aprovado, é a produção, que demora umas três semanas a um mês, porque em geral temos de alugar um lugar ou pegar emprestado; depois, filmamos umas 3/4 horas e mais um mês para editar e ir ao ar. Vai até a uns dois meses entre a escrita e a veiculação
A pressão para terem sucesso e piada prejudica o vosso trabalho?
A gente tenta não ter pressão, não se importar muito com as visualizações. Não sei quantas vezes cada vídeo é visto e acho que isso é bom. A pressão é contraproducente. Uma das coisas boas de termos o nosso próprio negócio, sermos os nossos próprios patrões, é que não temos a preocupação de agradar a ninguém a não ser a nós mesmos, e um dos problemas da televisão é que nos tornamos escravos da audiência e do sucesso. O que determina o que eles ganham é quanto eles estão dando de audiência. Já nós não temos essa pressão, e o público gosta disso. Tenho a impressão que o público costuma fugir de quem vai atrás dele desesperadamente, de um artista que quer a todo o custo ser popular, agradar e fazer pesquisas para descobrir o que o público quer, como a Globo faz. O público quer ser surpreendido, quer algo que seja bom, ponto.
O que é que te inspira particularmente?
A mim inspiram-me as proibições, tudo aquilo que não se pode falar ou aquilo de que não se fala em geral. Inspira-me falar o oposto que o jornal está falando, no meu caso a Folha [de S. Paulo, onde o Gregório tem uma coluna). Inspira-me dizer o que não está sendo dito, que é o que mais me interessa. Isto porque um humorista pode cair no erro e, volta e meia eu caio também, de falar do que está na moda, daquilo que todo o mundo fala, e para mim o humor tem de ir na direção oposta, naquilo que não está sendo dito, então é fugir do cliché, do ‘small talk’ como se diz.
Há muito de ti nas personagens que crias?
Tem sim. O nosso principal material de trabalho, a matéria-prima do humorista, são as próprias vivências e os próprios medos. Muito daquilo de que se fala na psicanálise, o humorista fala no trabalho. Foi até por isso que saí da psicanálise, porque estava sem assunto no trabalho, estava sem piadas. O humor é uma forma de fazer terapia gratuita.
Como é conciliar o teu lado de humorista, de ativista e de escritor? Achas que são três áreas que se cruzam?
Tudo o que se faz na vida, pode fazer-se de forma política. Toda essa preocupação e consciência podem ser levadas para o humor. E o humor, sobretudo, é sempre político, estamos sempre rindo de alguém, a escolha quem estamos a rir é uma escolha política, assim como o que comemos, o nosso meio de transporte, optar pela bicicleta ou pelo transporte público ao invés do carro. Diariamente fazemos escolhas políticas, então o humor, que é basicamente rir de algo ou de alguém, é também uma escolha fundamentalmente política. Não acho que seja aleatória. Nada, na verdade, são escolhas aleatórias.
O Porta dos Fundos está de regresso a Portugal, o que podemos esperar da peça “Portátil”?
“Portátil” é um espetáculo de improvisação, mas um tipo de improvisação diferente do que aquilo a que estamos acostumados. Em Portugal tínhamos “Os Improváveis” e os “Commeedia a la Carte”, e este é diferente porque é um formato longo. Nós temos uma hora e meia de história contada, tipo um romance. Vamos contar a história de uma pessoa durante o espetáculo, que se vai apresentar voluntariamente, e contar a sua história em cinco minutos. E a partir daí vamos improvisar a história da sua vida e não vamos parar no presente, vamos também contar o futuro onde esse ser humano vai parar. É um espetáculo que gosto muito de fazer. No Brasil já está há dois anos em cartaz. Também já o fizemos em Portugal e foi incrível. Os melhores espetáculos talvez tenham sido aí e estávamos muito ansiosos por voltar.
Porquê “Portátil”?
“Portátil” vem da ideia de que é um espetáculo que não tem cenário e é feito para viajar. Tem também um trocadilho com o Porta dos Fundos e com o facto de cada um de nós levar um monte de histórias consigo.O que é que você leva com se te pedissem para contar qual é a história da sua vida? O espetáculo é sobre isso.
Qual a maior diferença entre o público português e o brasileiro?
O público brasileiro em geral é mais histérico, ao mesmo tempo que é menos sincero. O público português, por exemplo, quando perguntamos a história de vida de alguém, fala a verdade. Em Portugal, numa parte em que pedimos “diz um problema da sua vida” tivemos respostas como “a solidão”. Já no Brasil as pessoas falam “a minha sogra”, ou seja, não é o problema real. da sua vida. O brasileiro quer ser engraçadinho e, em Portugal, tivemos espetáculos muito sinceros e até dramáticos e tristes, e adoramos isso porque, embora o espetáculo vá para a comédia, ficamos muito felizes quando conseguimos ser poéticos, líricos, tristes; e isso é algo bonito para nós. Gosto de experimentar outros géneros e às vezes a plateia pede-nos isso.
Qual é a tua opinião sobre o trabalho do César Mourão?
Estou muito feliz. O João [Vincente de Castro], que é um dos atores da peça, não pode vir, e fiquei apreensível porque ele faz o espetáculo lindamente, mas pensámos logo no César, porque já tínhamos trabalho juntos. Já estive no palco com ele em ‘Commedia a la Carte’ e ele já fez um vídeo para o ‘Porta dos Fundos’ e é um grande parceiro, e um cara que eu admiro muito. É um grande humorista português e um grande improvisador. É um prazer trabalhar com ele e foi natural escolhê-lo para fazer a peça connosco.
O que é que gostas em Portugal e no povo português?
Gosto muito dos amigos que eu fiz, é um país que cultiva muito a amizade. Quando se faz um amigo português é para a vida toda, cada vez que vou a Portugal, faço novos amigos. Gosto muito da comida e da bebida, aquela resposta que todos dão. Mas também a educação, é um povo muito educado, e vocês às vezes nem percebem como são educados e acolhedores com o estrangeiro em geral. O mundo fecha cada vez mais as portas para a diferença, Portugal é um país aberto para o mundo, para a mudança. É um país que está na vanguarda do mundo em muitos aspetos, das drogas à questão do aborto e do casamento gay, é um país muito mais progressista do que as pessoas pensam e muito acolhedor com a diferença. É claro que vocês adoram citar, como disse Sérgio Godinho “Só nesse país”. Mas eu acredito que só em Portugal se acolhe tão bem as diferenças.