Como nação, os Estados Unidos despertaram tarde para a seriedade do coronavírus. E os resultados estão à vista: 959 mil pessoas infetadas e mais de 54 mil mortos (até ao momento da publicação deste artigo), tendo ultrapassado largamente o número de vítimas mortais registados na China e em Itália.
Mas nem tudo é mau. Há casos como o de Maryland, onde o plano de prevenção implementado pelo governo local na segunda quinzena de março evitou números catastróficos, como se verifica, por exemplo, em Nova Iorque. “Temos cerca de 18 mil casos de contágio e 797 mortes. Estamos numa fase em que ainda não chegámos ao pico,” explica-nos Marlucia Namashulua, 37.
“O país está a correr contra o tempo. Aqui em Maryland, só funcionam os serviços considerados essenciais, como os transportes públicos [embora com opções significativamente reduzidas], supermercados, farmácias e alguns restaurantes com serviço de take-away ou de entrega em casa.”
Nascida na América, filha de uma brasileira e um moçambicano, Marlucia tem na voz a extroversão de terras de Vera Cuz, a alegria do continente africano e, acima de tudo, a praticidade de ver as coisas dos americanos. Apesar de a sua rotina ter sido drasticamente alterada pela pandemia, encara as restrições como medidas extraordinárias (e necessárias) face a uma situação excecional.
Que medidas de distanciamento social estão em vigor no estado de Maryland?
O governador Larry Hogan decretou uma “Stay-at-home order” [ordem estadual de ficar em casa] em meados de março. Ninguém pode estar na rua e o comércio é encerrado às 20H. No início, eram proibidos aglomerados de mais de 20 pessoas, mas o número foi diminuindo. Quando as coisas ficaram mais intensas em Nova Iorque, os restantes estados começaram a trabalhar mais no sentido de incentivar os americanos a ficar em casa.
Consideras que tem sido feito um bom trabalho no combate ao surto pandémico?
No caso do governo local, sim. O governador está a trabalhar de perto com a comunidade médica e científica, de modo a diminuir o número de contágios. Não posso dizer o mesmo em relação ao governo federal. O mundo todo está a assistir ao que se passa nos Estados Unidos: chegámos a um ponto em que ultrapassámos os casos italianos. Mas também temos de ter em consideração o tamanho do país e que temos estados que são do tamanho da Itália. Mesmo assim, é muita gente.
Há um braço-de-ferro entre os governadores e a Casa Branca?
Recentemente, Donald Trump disse reabrir a economia fica ao critério de cada governo local. Portanto, cada estado está a fazer aquilo que acha melhor, porque o presidente ‘lavou as mãos’. Os governadores estão mesmo a fazer aquilo que podem. A principal questão é o funcionamento do comércio, para que a economia não entre em colapso. Há muita gente sem trabalho, e o governo não está a fazer o suficiente. Os estadunidenses estão a receber uma ajuda financeira única – e só se forem qualificados. Por exemplo, um emigrante que é casado com um americano não tem direito a um “stimulus check”.
Como é que os americanos estão a encarar a situação?
Há muitas pessoas que acreditam naquilo que o presidente diz e como ele menosprezou esta situação desde o início, elas fazem o mesmo. Associam o coronavírus a teorias da conspiração. E são essas pessoas que saem à rua e colocam as vidas dos outros em risco. Na mesma medida, há quem esteja a respeitar a quarentena, a ser solidário e a fazer a sua parte para que isto passe.
No teu caso, é possível estar em regime de teletrabalho?
Sim. Eu trabalho numa agência imobiliária corporativa, que também é considerado um setor essencial porque gerimos prédios onde há supermercados, por exemplo. A empresa deu-me um computador e, até agora, só tive de ir ao escritório uma vez – ele não encerrou completamente. Notei que estão a fazer um bom trabalho a nível de limpeza, que é feita minuciosamente e regularmente.
Como é ter de sair de casa em tempos de quarentena?
Eu não saio muito, porque tenho asma e já tive bronquite na infância. Só saio para ir deitar o lixo fora e para ir ao correio – temos feito muitas compras online.
Aqui em casa, a única que sai é a minha irmã, para ir comprar bens essenciais. Ela vai ao supermercado a cada duas semanas (e sempre ao mesmo), e nota que a população está bastante consciente do distanciamento social e de que não se trata de um passeio: as pessoas entram, compram aquilo de que precisam e saem. Toda a gente usa luvas e máscaras, que são obrigatórias na rua, independentemente do motivo da saída, e os corredores só têm um sentido, o que evita que alguém entre por outro lados e que haja contacto. Nas filas para as caixas, há faixas no chão a marcar a distância de dois metros entre os clientes.
“OS AMERICANOS GOSTAM DE RESULTADOS; QUEREMOS TUDO PARA ONTEM. AS PESSOAS JÁ ACUSAM EXAUSTÃO DA QUARENTENA E QUEREM SAIR À RUA, MAS NÃO É POSSÍVEL”.
Neste momento, do que mais sentes falta?
Eu sinto falta de ver e estar com pessoas. Embora eu goste de estar em casa, também gosto muito de socializar. É verdade que podemos falar ao telefone ou por videochamada, mas não é a mesma coisa do que estar fisicamente com alguém. Ainda por cima agora, que estamos na primavera. O tempo está bom e, normalmente, nesta altura do ano, as pessoas já saem, fazem atividades na rua, etc. Sinto falta disso e acredito que, mesmo quando isto passar, vai ser difícil retomar essa rotina.
Que lição estás a aprender com o isolamento?
Estou a aprender que nós não controlamos nada e a aceitar as coisas como elas são, o que é bom, porque me deixa menos ansiosa e stressada. Estou a viver um dia de cada vez e, de certa forma, o que me conforta é saber que estamos juntos nisto e que estamos a ficar mais compassivos e conscientes. Quando dermos por nós, esta fase vai estar no passado e vamos poder contar estas histórias aos nossos filhos e netos, porque vamos superar isto. Eu acredito que sim.