Lembram-se? Bill Gates financiou a covid-19 para vender vacinas e ganhar poder; os governos de todo o mundo usaram o Covid como desculpa para transformar os seus sistemas em ditaduras; o 5G foi o responsável pela pandemia; os chineses criaram e divulgaram o vírus para dominarem a Terra; o vírus pode ser eliminado bebendo álcool (também há a versão mais campestre, mas mais difícil de pôr em prática, da urina de vaca); e por aí fora. Durante o Covid fomos vítimas da pandemia, mas assistimos ainda a outra pandemia, não menos generalizada: a das fake news, ou notícias falsas.

Claro que teorias da conspiração não começaram no Covid. Três das mais famosas foram:

1. A aterragem na Lua é falsa – Há quem acredite que foi tudo inventado pelos americanos e gravado em estúdio, para ganharem a corrida ao espaço dos anos 60.

2. A Sida foi uma doença sintética – Criada em laboratório por um grupo conspiratório ou por uma agência secreta, como a CIA, o objetivo seria o controlo populacional.

3. Um ovni caiu em Roswell – Há quem acredite que uma nave caiu nos EUA e deixou um cadáver de um extraterrestre. Nos anos 90, dois imaginativos recriaram a suposta autópsia e a fraude só foi desmascarada quando já tinha sido largamente exibida nos noticiários de todo o mundo.

Isto para não falar na suprema teoria da conspiração dos Terraplanistas, que ainda acreditam que a Terra é plana. E como é que chegaram a essa conclusão: em 2014, um professor universitário chamado Eric Dubay apresentou em 35 páginas 200 ‘provas’ de que a Terra era plana. Segundo ele, as agências espaciais falsificam explorações, notícias e viagens ao Espaço, sendo a NASA uma produtora de efeitos especiais. Dubay fundou a Sociedade Internacional de Pesquisa dobre a Terra Plana e o rastilho estava lançado: hoje há milhares de pessoas nossas contemporâneas que acreditam que a Terra é plana.

O que são ao certo fake news

O termo fake news passou a ser mais falado dois anos depois, em 2016, durante a campanha de Donald Trump, em que foram identificados alguns sites que divulgavam conteúdo duvidoso e que teriam mesmo ajudado a influenciar o resultado das eleições.

Esse pode ser um dos objetivos das fake news, mas não é o mais comum nem o mais óbvio. Os autores de fake news podem usá-las por motivos tão básicos como criarem conteúdo sensacionalista que atrairá mais gente para os seus sites, por exemplo. Existem mesmo grupos que trabalham especificamente para espalhar notícias falsas. Porque é tão difícil identificá-las? Porque estão naquilo a que se chama ‘dark web’, uma parte da rede que os motores de busca não apanham, que fica como um avião fora da torre de controlo. Outras espalham-se por simples disseminação de notícias falsas, como a de que a vacina contra o sarampo causaria autismo, o que levou a um aumento de uma doença que estava já praticamente extinta.

Durante a pandemia, a população de todo mundo ficou mais exposta aos boatos, por várias razões: estávamos mais interessados (na doença), estávamos mais preocupados, mais frágeis, menos concentrados e tínhamos mais tempo para navegar na net. Resultado: uma explosão de informações, desinformações e contrainformações que criou um ano totalmente caótico. Boas notícias: o caos foi tanto que as pessoas também ficaram mais atentas à necessidade… de estarem atentas. Mas o cansaço não é um bom professor, e nem sempre escapámos às armadilhas.

A ciência em tempo real

As notícias falsas têm geralmente uma característica em comum: apesar de serem falsas, parecem mesmo verdade. Aliás, o nosso mundo tornou-se tão surrealista que ‘parecer verdade’ é cada vez mais fácil. Por isso caímos tantas vezes na esparrela. Quem é que nunca partilhou uma notícia falsa? Até Diana Barbosa afirma que já o fez. Cofundadora e presidente da Comcept – Comunidade céptica portuguesa, uma ONG que promove o pensamento crítico, a racionalidade e a ciência, Diana faz parte do grupo de pessoas que todos os dias luta contra o fenómeno das notícias falsas. Como se imagina, têm tido mais trabalho que o habitual numa altura em que as fake news se tornaram o prato do dia. Bióloga durante 10 anos, Diana começou a trabalhar em comunicação de ciência e hoje faz a gestão de comunicação do Instituto de História Contemporânea. Além disto, preocupa-se em aumentar a literacia digital das pessoas que a seguem, o que não é fácil.

A Comcept nasceu em 2012 como um grupo informal, e formalmente em 2016, quando inauguraram o site e escreveram o livro ‘Não se deixe enganar’, de que Diana é coautora. “O cepticismo tal como o praticamos é o conhecimento científico aplicado ao nosso dia a dia”, explica. “É cada vez mais importante aprender a separar o trigo do joio e perceber quando nos estão a tentar vender banha da cobra. O cepticismo inicialmente preocupava-se em desmascarar visões de ovnis ou videntes, mas hoje o foco está no negativismo, nas medicinas alternativas, nas fake news, em todo o tipo de fraudes que surgem na internet, na literacia digital.”

Hoje, a catadupa de informação ou pseudoinformação é tanta e em tantos meios que a Comcept optou por só partilhar dados de organismos legais e seguros. “As descobertas científicas estão a avançar com tal rapidez que algumas são divulgadas ainda sem confirmação, e isso torna necessário que tudo seja hiperconfirmado antes de ser partilhado. Essa megapartilha imediata expôs mais as pessoas aos bastidores do processo científico. Ou seja, nós estamos hoje a assistir à ciência em tempo real, e tudo isto está a ser uma overdose.”

Uma das perguntas mais comuns quando se fala de fake news é: porque é que quanto mais estranha é uma ideia, mais as pessoas acreditam nela? “Por um lado, porque as nossas crenças pessoais nos levam a acreditar nas coisas mais exóticas, e todos temos este viés de confirmação: se eu estiver predisposta a acreditar que tudo o que o governo faz é mal feito, por exemplo, é normal que acredite em todas as críticas ao governo e em tudo o que confirme essa crença”, explica Diana Barbosa. “Por outro lado, as pessoas mais antissociais e desconfiadas mais facilmente acreditam em teorias da conspiração, e normalmente quando se aceita uma, a pouco e pouco entram as outras todas.”

Mas qual é afinal o verdadeiro perigo?

Podíamos pensar nas fake news como apenas isso: notícias falsas que nos faziam rir uns minutos e que depois eram esquecidas e enviadas para o cemitério das notícias. O problema é que o processo não é assim tão inocente: não só dificulta o caminho da informação verdadeira como pode ter consequências gravíssimas, como o ressurgir de crenças que se julgavam enterradas desde os tempos da Idade Média.

“Isto é grave, porque se tem verificado cada vez mais, por exemplo com o surgimento dos grupos da Terra Plana”, nota Diana Barbosa. “Este movimento tem uma raiz religiosa, misturada com desconfiança geral, e quem entra nestes grupos e acredita que a Terra é plana também acredita que as vacinas causam autismo e que a ciência não funciona. E o que poderia ser descartado como um grupo marginal, de repente já adquiriu proporções assustadoras e começa a ser contagioso, porque toda a convivência entre esses grupos é de feedback positivo e de reforço das ideias de cada um.”

Antes da pandemia, assistimos por exemplo ao movimento antivacinas. “Curiosamente, o movimento antivacinas é sobretudo um fenómeno do primeiro mundo e de comunidades muito privilegiadas, onde os níveis de doença foram drasticamente reduzidos graças à vacinação”, explica Diana Barbosa. “O que os define é uma postura de autorreforço – eu sei o que os outros não sabem – que é para eles muito reconfortante. Há aqui um misto de sobreproteção da criança – porque este movimento nasceu sobretudo em pais. Esses pais dizem: ‘Eu não quero dar ao meu filho nada que lhe faça mal’. Ao mesmo tempo, isto relaciona-se com o ressurgimento das tendências naturalistas: ‘Aos meus filhos eu não dou medicamentos porque eles precisam é de um sistema imunitário forte.’

Às vezes espantamo-nos muito porque estas teorias saem da boca de pessoas que tínhamos como inteligentes e mesmo com formação superior. Problema: normalmente isto não tem a ver com inteligência, ou essa inteligência até atrapalha. “Às vezes, quanto mais inteligentes e formadas são as pessoas, mais facilmente argumentam e defendem as suas crenças”, nota Diana. “Durante a pandemia, nos Estados Unidos houve, por exemplo, um alastrar enorme da conspiração QAnon, que acredita que Trump trabalhava secretamente para salvar o mundo de um culto de pedófilos e canibais! Em Portugal, temos os grupos ‘pela verdade’. Nós rimo-nos, mas a verdade é que houve uma médica que deu indicações às pessoas de como fugir aos testes covid. Isto foi grave.”

Como nos defendermos

O que é que devemos fazer então? Pôr tudo o que lemos em causa pode ser cansativo e em última análise impraticável, mas há sempre campainhas de alarme que soam e nos dizem que, hummmm… aquela notícia talvez não seja verdade. Então vamos ver que base tem, se vem de uma fonte credível, científica ou jornalística. Devemos fazê-lo principalmente antes de a partilhar, porque uma onda de desinformação espalha-se tão rapidamente como outro vírus qualquer.

“O nosso ceticismo deve aplicar-se a tudo, do produto de supermercado à leitura de notícias”, aconselha Diana Barbosa. “E nem os grandes títulos de referência estão imunes. Mas devemos lembrar-nos que partilhar, mesmo que inocentemente, uma notícia falsa, não acontece sem consequências, porque atrás de uma notícia sobre o triângulo das Bermudas vem outra e outra e outra.”

Recorda que ela própria já caiu na esparrela das fake. “Uma vez li uma notícia anunciando que Donald Trump ia nomear um ministro criacionista. Vi a notícia partilhada por uma professora universitária, e sendo Trump quem sabemos que é, acreditei e partilhei. Lá está, o meu viés de confirmação fez-me acreditar naquilo: aliás, ele nomeou pessoas ainda muito piores (risos). Mas não era verdade. Portanto, antes de partilharmos o que quer que seja, temos de ter muito cuidado com o sítio onde fomos buscar essa informação.”

Já agora, o que é um viés de confirmação? Quando acreditamos em alguma coisa, tendemos, mesmo que inconscientemente, a aceitar tudo o que está de acordo com essa opinião. Mesmo que haja várias e credíveis evidências em contrário, estas são ignoradas ou desconsideradas a favor das nossas crenças. Podemos pensar, com razão, que isto é que faz com que seja tão difícil discutir com alguém que tem já tem ideias feitas, mas todos nós, de uma maneira ou outra, as temos.

Desmontar uma mentira

Tentar espalhar a verdade científica é cansativo e há momentos em que vale a pena responder para que as pessoas percebam o que se passa, mas quando o tipo de comentário é demasiado agressivo, Diana escolhe ignorá-lo. “Às vezes, andamos horas a desmontar argumentos quando a pessoa só faz é ‘mexer a baliza’. Há pessoas muito insistentes, muito rápidas, que desatam a disparar links, mas não querem realmente discutir um assunto, só querem ser agressivas. E desmontar uma falácia dá trabalho, é preciso ler os links, argumentar, e há dias em que se perde a paciência. Queremos manter uma atitude pedagógica, por isso escolhemos as nossas batalhas de forma a não nos exaltarmos.”

Ela e os seus colegas tentam colocar sempre a melhor informação disponível e quem tiver curiosidade pode investigar mais a fundo um assunto. “Mas temos a preocupação de sermos cada vez mais cuidadosos porque as consequências são cada vez mais sérias.”

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