No Dia Internacional da Mulher, lembramos as mais de 57,6 milhões de refugiadas, deslocadas internas ou apátridas que existem no mundo e que enfrentam as mais variadas ameaças. Falámos com Joana Feliciano, Responsável de Marketing e Comunicação da Portugal com ACNUR, agência das Nações Unidas que faz um trabalho importantíssimo no acesso destas mulheres e meninas a serviços essenciais e a oportunidades para reconstruírem as suas vidas e na sua proteção contra a violência e discriminação.
Segundo o Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR), cerca de 50% do total de pessoas refugiadas ou deslocadas internamente são mulheres e raparigas. Quais os principais eventos mundiais que provocam atualmente essa deslocação?
Na generalidade, as deslocações forçadas são consequência da guerra, violência, violações de Direitos Humanos e dos próprios efeitos das alterações climáticas, fenómenos que no seu conjunto levaram já mais de 114 milhões de pessoas a serem obrigados a fugir e a deixar tudo para trás. Entre estes, verifica-se uma elevada proporção de mulheres e meninas – mais de 57.6 milhões de refugiadas, deslocadas internas ou apátridas. Esta predominância de pessoas do sexo feminino entre os deslocados deve-se, nomeadamente, aos efeitos da violência de género e discriminação que sofrem, ao papel de cuidadoras que assumem em muitas culturas, cabendo-lhes a elas preservar a segurança dos filhos e outros elementos vulneráveis da família; ao acesso desigual a recursos económicos e educacionais e à falta de redes de apoio para resistirem em situações de perigo.
Em termos das emergências humanitárias que mais têm contribuído para este elevado número de mulheres e raparigas deslocadas, destacam-se os conflitos armados em várias regiões do mundo, entre as quais Ucrânia, Síria, Afeganistão, Sudão, Sudão do Sul e República Democrática do Congo ou a perseguição política, violência étnica, religiosa e de género em países como Myanmar e Venezuela. Mais recentemente, tem-se somado também o grande impacto dos desastres naturais e de fenómenos climáticos extremos, como as inundações no Paquistão, os ciclones em Moçambique ou a seca extrema no Corno de África.
Que ameaças é que mulheres e raparigas enfrentam?
Para estes milhões de pessoas, ser forçado a fugir não é apenas uma questão de deixar para trás os seus bens, é uma separação dolorosa das suas famílias, um rompimento com os seus meios de subsistência e uma jornada repleta de desafios e perigos em busca de segurança. Durante a deslocação, acabam por se deparar com inúmeras barreiras linguísticas, constrangimentos legais e até mesmo discriminação.
E, lamentavelmente, para muitas destas mulheres e meninas representa também um aumento alarmante do risco de serem vítimas de atos de desigualdade de género, ameaças, vulnerabilidade e de violência baseada no género (VBG). Num mundo que as coloca logo à partida em desvantagem, estima-se que uma em cada três mulheres estará exposta à violência de género durante a sua vida, realidade esta que se agrava em contexto de deslocação. A VBG é uma grave violação dos Direitos Humanos e um importante problema de saúde pública que afeta profundamente as suas vidas física, psicológica, sexual e/ou socioeconomicamente.
As mulheres e meninas deslocadas são particularmente vulneráveis, sendo frequentemente vítimas de várias formas de violência: violação, abuso psicológico ou emocional, casamento infantil ou forçado, mutilação genital feminina, tráfico humano para exploração sexual e servidão doméstica, negação de recursos, agressão física e/ou sexual e negação de direitos básicos (desde o acesso à Educação ao direito de transmitir a nacionalidade aos seus filhos). Estas são ameaças persistentes com que se podem deparar antes, durante e após a fuga.
Em que circunstâncias é que são mais expostas as essas ameaças?
Muitas meninas e mulheres deslocadas enfrentam uma dolorosa realidade, com um risco constante de serem vítimas de violência, perseguição e discriminação, desde o momento em que são forçadas a fugir até ao momento em que encontram um local de acolhimento.
Mesmo quando chegam a um local de refúgio temporário podem continuar a enfrentar riscos significativos de violência de género, como violência sexual, doméstica, exploração e tráfico humano. E, quando finalmente alcançam um destino final de acolhimento e integração, os perigos não desaparecem. Podem ser alvo de ameaças de violência, perseguição e discriminação devido a preconceitos culturais, estigmatização, marginalização ou falta de proteção legal. Para além disso, podem enfrentar obstáculos no acesso a serviços básicos, como saúde, Educação e emprego.
Que iniciativas e mecanismos de proteção é que existem?
Um dos principais focos do ACNUR tem sido garantir que as mulheres e meninas deslocadas tenham acesso a serviços essenciais (abrigo, saúde, Educação, etc.), proteção contra a violência e discriminação e oportunidades para reconstruir as suas vidas com dignidade e segurança.
Em relação à prevenção e resposta à violência de género, o ACNUR está a implementar programas abrangentes que envolvem um trabalho de consciencialização, serviços de apoio psicossocial, assistência no acesso à justiça e proteção legal, bem como a criação de espaços seguros para mulheres e meninas. Por exemplo, na Jordânia, centros de apoio geridos pelo ACNUR ou parceiros oferecem aconselhamento psicossocial, apoio jurídico, atividades de empoderamento, oportunidades de aprendizagem e formação vocacional a estas mulheres.
A assistência médica e apoio ao nível da saúde sexual e reprodutiva tem sido outro dos pilares do trabalho da Agência da ONU para os Refugiados, procurando garantir que estas mulheres e meninas têm acesso a cuidados pré-natais, parto seguro, contraceção, prevenção e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis e apoio psicossocial para sobreviventes de violência sexual.
Também as iniciativas e programas que visam o acesso à Educação formal e informal através da criação de escolas seguras, bolsas de estudo e incentivos para manter meninas no Ensino, têm sido essenciais para assegurar a proteção e um futuro digno para estas meninas e jovens deslocadas.
Quanto às mulheres deslocadas, o ACNUR tem trabalhado o seu empoderamento económico e social através de programas de capacitação profissional, educação, oportunidades de emprego, microcrédito e apoio para iniciativas de geração de rendimentos, fortalecendo assim a sua independência e capacidade de sustentar a si mesmas e às suas famílias. Por exemplo, no Uganda está a apostar num programa para mulheres refugiadas sul-sudanesas que promove grupos de poupança, empréstimo e formação de negócios.
E que medidas a nível local são postas em prática pela Portugal com ACNUR?
A nível local, o nosso trabalho enquanto parceiro nacional do ACNUR centra-se na sensibilização e angariação de fundos. Estamos, por isso, a realizar várias sessões de sensibilização e consciencialização junto de escolas e universidades, para envolver alunos de todas as idades neste tema da deslocação forçada e promover um espírito inclusivo no acolhimento a pessoas refugiadas. Ainda com este objetivo em mente, temos desenvolvido vários workshops, palestras e campanhas digitais e físicas e apostámos também numa abordagem Face to Face para promover uma cultura de acolhimento, solidariedade e respeito pelos Direitos Humanos e pela diversidade.
Ao nível da angariação de fundos, procuramos trabalhar com doadores regulares individuais e coletivos, como as nossas ‘Famílias com ACNUR’, e também com Organizações para garantir o seu apoio e assim continuar a assegurar o financiamento destes programas do ACNUR, essenciais para salvaguardar o futuro destas mulheres e meninas ao fornecer-lhes os instrumentos necessários para que reconstruam as suas vidas com dignidade e esperança.
Perante o panorama político mundial, e com a ascensão dos movimentos populistas, prevê-se uma maior resistência à chegada de migrantes pelas comunidades?
É fundamental abordar as questões relacionadas com a migração com empatia e equilíbrio, reconhecendo o contexto humanitário das pessoas deslocadas, em particular o da deslocação forçada sobre o qual a Portugal com ACNUR atua.
O ACNUR e outras Organizações humanitárias desempenham um papel crucial ao fornecer informações precisas sobre as razões pelas quais as pessoas são forçadas a fugir, bem como sobre os seus Direitos e necessidades, tentando assim combater quaisquer eventuais receios e discursos de resistência. É essencial continuarmos a promover o diálogo entre as comunidades anfitriãs e as pessoas deslocadas, construindo uma base de confiança, compreensão mútua e empatia. Ao abordar as preocupações legítimas das comunidades locais e ao fornecer o apoio necessário às pessoas deslocadas, estamos a criar as bases para lidar de forma eficaz e humanitária com os desafios de ambas as partes.
Reafirmamos o nosso compromisso, enquanto Portugal com ACNUR, de contribuir para a construção de uma sociedade mais inclusiva e compassiva.
Como é que o ACNUR trabalha com as comunidades a questão da tolerância e solidariedade?
Uma das nossas principais abordagens foca-se na educação e sensibilização sobre as causas e consequências do deslocamento forçado, bem como sobre os Direitos e necessidades dos refugiados, o que ajuda a combater a desinformação e os estereótipos negativos. No nosso país, por exemplo, a Portugal com ACNUR tem estado a desenvolver as ações de sensibilização junto de Autarquias, sociedade civil local e em escolas e universidades com alunos de todas as idades, tendo sempre o cuidado de adaptar o discurso à faixa etária em causa.
Entendemos que o envolvimento das comunidades locais é essencial para promover a participação ativa e o empenho na assistência e proteção às pessoas deslocadas à força, nomeadamente através de programas de integração que incentivem o intercâmbio cultural, a cooperação e o apoio mútuo. Por esse motivo, a nível global, o ACNUR apoia iniciativas que visem fortalecer as capacidades das comunidades locais para lidar com os desafios associados ao acolhimento e integração de refugiados, o que pode incluir formação de profissionais de saúde, educadores e líderes comunitários para prestar serviços adaptados às necessidades dos refugiados. O apoio a líderes comunitários e Organizações da sociedade civil parceiras que trabalhem para promover a tolerância e solidariedade em relação a estas pessoas deslocadas é também essencial para que os seus contributos nas comunidades que as acolhem sejam valorizados.
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