Ok, então: sei que vou soar repetitiva, mas com ‘Deus na escuridão’ (Valter Hugo Mãe) cá fica outro ‘monstro’ da literatura portuguesa. Vou dizer a mesma coisa que disse na Lídia Jorge (ver Livro da semana passada, se tiverem paciência): noutras alturas, eu teria olhado para ele e pensado – Ai deve ser tão chato, vou mas é ler outro policial.
Ao contrário da maioria da população, não passei a pandemia a ler nem a ver Booktokers, perdi mesmo bastante o hábito e agora estou a tentar recuperá-lo. E não é que tenho tido boas surpresas?
Como desta vez eu já levava o primeiro ‘monstro’ às costas, decidi que este era o ano dos monstros (afinal, segundo os chineses estamos no ano do Dragão, não que seja a mesma coisa mas agora fez-me jeito a comparação). Então peguei nele como quem diz – Vamos lá dar o benefício da dúvida também a este.
Olhem: vocês vão preparados. Chorei tanto desde a primeira até à última página que ainda tenho os olhos inchados. O mais irritante é que chorava contra mim, como nos velhos melodramas de Hollywood em que a pessoa vê claramente visto os tipos a carregarem em todos os botõezinhos que dizem ‘chorar’ e a pessoa chora. Senti-me verdadeiramente manipulada o livro inteiro, e o pior é que não conseguia fazer nada contra. Eu sabia que aquilo estava tudo pensado para aquele rio de lágrimas, e mesmo assim não conseguia parar.
Enfim. Talvez nem quisesse. Porque não havemos de chorar com um livro, mesmo que seja chantagem emocional com o leitor durante – deixa cá ver – cada linha das suas 267 páginas (acho que até chorei com o índice dos capítulos).
Então, a história: é a história do elo que une dois irmãos, Paulinho e Serafim, ou Felicíssimo e Pouquinho, assim chamado desde que nasceu sem, como se diz, ‘origens’. Contado pela voz do irmão mais velho e protector, o livro é, como se costuma dizer, um hino à amizade dos irmãos, nascidos e criados num meio duro como era a Madeira de há muitos anos.
O livro nasceu das várias viagens que o autor fez à Madeira, e também, como ele próprio conta, de ter conhecido uma senhora madeirense, mãe de uns amigos, que o impressionou pelas histórias e pela maneira de as contar. Também o ambiente e o passado madeirense devem ter ressoado num dos temas mais frequentes em VHM, a solidão e o isolamento e o que isso nos faz. O título – que, já explicou VHM, tem a ver com qualquer coisa como que o amor das mães é o único que poderá ser comparável ao amor de Deus, e o que estes irmãos têm é esse tipo de amor e cuidado.
Pronto, podem esquecer a filosofia da coisa (eu pelo menos esqueci) porque a relação entre os irmãos e a forma como está contada é tão intensa que não precisa de Deus para lhe dar credibilidade.
É precisamente a linguagem que nos aproxima tanto do irmão protector. A fragilidade de Pouquinho leva a este cuidado e este amor por parte do irmão, mas curiosamente sentimos quem ama (Felicíssimo) muito mais frágil e mais desprotegido. Eu pelo menos senti. Nunca chorei por Pouquinho e chorei muitas vezes por Felicíssimo. “Eu disse: sou um castelo construído em cima de meu irmão rei. Para lhe mexerem terão de lutar contra minhas pedras, minhas paredes altas e meus mil guerreiros já armados.” Aí já vamos em lágrimas.
O livro espelha também o que era a vida ainda nos anos 80 numa ilha com gente isolada a quem faltava tudo. “Pouquinho vivera algo menos a avareza do mundo mas eu lembrava ainda de invernos severos, quando por uma ou outra noite não se entregava nada à mesa. Ficávamos abraçados, calados, como se apenas esperando que o tempo mudasse para uma abundância maior. Não se discutia. Era melhor nem se fazer conversa. Que as palavras usavam a boca, e a boca movendo pensava muito mais na fome.”
E além de Pouquinho e Felicíssimo, assistimos a outras personagens inesquecíveis: a terrível Baronesa (“sua cabeça tinha apenas tormenta e vazio”) com as suas duas criadas tão igualmente escravizadas e desindividualizadas que haviam ganho a alcunha de ‘As Repetidas’, os pais, os amigos, os vizinhos.
A idade adulta separa os irmãos, pelo menos fisicamente. Mas Felicíssimo não consegue quebrar o isolamento e levar Pouquinho a ver o mundo, quando é rejeitado para o serviço militar que poderia abrir portas aos dois irmãos, por perguntar se podia levar o irmão para conhecer o continente. “Eu julgo que foi só isto que eu disse que levou a que os homens me rejeitassem. Estavam desabituados de alguém amar um irmão. Foi o que pensei. Que não tinham hábito de alguém amar um irmão. Tive pena deles.”
A certa altura, contra todas as expectativas, Pouquinho cresce, arranja uma namorada e casa (ganhando os dois a alcunha de ‘os Poucos’). É um duro golpe para o irmão-mãe, que se sente abandonado. “Que fizera eu de minha vida senão um tempo em torno da santidade de meu irmão. O que fizera eu do meu amor senão um cuidado pela vida de meu irmão.” Agora tudo muda: “Por ingenuidade e desconhecimento do amor, eu acreditei que o amor não podia nada perante a antiguidade de outros sentimentos e pertenças.”
A partir daqui acontece mais dura prova ao amor do irmão mais velho pelo mais novo, que não posso aqui contar porque já me acusaram de ser a rainha dos spoilers e porque também não vos vou contar tudo, façam favor de ir ler.
‘Deus na escuridão’ – Valter Hugo Mãe, Porto Editora, E18,85