Sempre gostei de ler os livros da Ana Cristina Silva porque ela – virtude da profissão – parte sempre da personalidade do seu protagonista. Quem temos aqui? Porque é que esta pessoa fez o que fez? De que forma é que o meio em que nasceu a moldou, ou não, e de que forma é que deixou a sua marca nesse meio? Geralmente também, interessa-se pelo poder, pela maldade e pelas personalidades narcísicas, e como tudo isto está interligado.
Este ‘El-rei Nosso Senhor: Sebastião José’ é um romance biográfico que parte da personalidade do Marquês, um narcisista cuja ascensão ao poder começou no famosíssimo terramoto de 1755, a partir do qual controla o governo e o país.
Era claramente um homem muito inteligente, ao mesmo tempo atraente e repulsivo, fascinante mas cruel. Também aqui, foi o poder que fascinou Ana Cristina Silva. O Marquês de Pombal era uma pessoa encantadora, mas esse encanto escondia um enorme ressentimento por não ser completamente aceite dentro da nobreza. A palavra ‘fidalgote’, como era depreciativamente visto pelos ‘verdadeiros’ fidalgos, aparece várias vezes ao longo do livro, e é incrível o poder que uma única palavra pode ter na vida de um homem. A partir daqui, Sebastião José vai usar o seu poder cada vez maior para castigar com a maior crueldade os inimigos da sua ascensão. Para isto também usou a propaganda e manipulou os acontecimentos à sua volta.
Tal como nas ‘Longas noites de Caxias’ (se ainda não leram, leiam que é muitíssimo interessante: um romance sobre duas mulheres em lados opostos durante a ditadura e um relato das ‘técnicas’ da PIDE para conseguirem confissões) não consegui ler a parte da tortura, confesso que aqui também tive de saltar as páginas em que se relata a tortura dos Távoras ou a morte do padre Malagrida. Nao tenho arcaboiço mental para ler aquilo.
Mas o livro é ainda mais interessante porque faz contrastar a imensa crueldade do Marquês com, por exemplo, a sua vida afetiva carinhosa e longa, a sua relação de paixão primeiro com Teresa, que rapta, depois com Eleonor Ernestina, a austríaca que esteve sempre ao seu lado e lhe deu numerosos filhos. Também é interessante que o leitor às tantas dá por si a simpatizar com o Marquês, para, umas páginas à frente, se confrontar com a sua manipulação, crueldade e falta de escrúpulos.
Claro que, como também é comum em Ana Cristina Silva, os romances podem passar-se numa época mais ou menos longínqua mas têm sempre qualquer coisa em comum com a nossa. Neste caso, a personalidade narcísica de Sebastião José lembra-nos por vezes uma outra ‘personagem’ bem conhecida: “A estrutura da narrativa foi directamente inspirada em Donald Trump” explica à ACTIVA Ana Cristina Silva. Ou seja, o livro está escrito na terceira pessoa – Sebastião José fez isto e aquilo – mas isso na verdade corresponde à primeira pessoa narcísica. “O Trump também fala nele próprio na terceira pessoa, como por exemplo ‘está a ser julgado por um juiz que não gosta de Trump’ e eu recriei este modo de falar. Além de que são ambos homens narcísicos.”
Portanto, em resumo, quando lemos sobre Sebastião José não estamos apenas a ler sobre aquele homem e as suas circunstâncias ou a aprender mais sobre a sociedade de D. José. Estamos também a perceber como se desenvolve e atua uma personalidade narcísica, como acontecem os jogos de poder e como uma pessoa encantadora, bom pai e bom marido pode coexistir com um homem capaz de tudo para destruir quem odiava.