Aviso: este livro vai seriamente comprometer a nossa capacidade de ficar de olhos secos. Que é como quem diz, prepare-se para chorar desalmadamente, digo mesmo chorar como poucas vezes chorou na vida. Principalmente se tiver cães. Quem não tiver, não sei se vai ser tão sensível ao tema, mas vocês me dirão.
“O cheiro dele depois da chuva”, do francês Cédric Sapin-Defour, não é a história de um cão, nem a história da sua família: é uma história de amor. Isto não é um segundo Marley: para começar, não tem nada de fofinho. É muito bem escrito, muito real, muito sofrido, muito vivido, e o cão nunca é infantilizado. É um livro de ‘memórias, mas também uma homenagem, um tributo e um agradecimento.
O pior é que uma pessoa, francamente, não se aguenta composta. Até mais ou menos ali a dois terços do fim, ainda vamos mais ou menos. Seguimos a feliz vida de Ubac, um boieiro de Berna (não é um São Bernardo, mas anda lá perto) e do seu dono (ou tutor, ou o que lhe queiram chamar), que é o autor do livro.
Acompanhamos a escolha mútua desde que Ubac era bebé, os primeiros passos na neve, o primeiro dia em casa, e depois a vida em comum. Assistimos à expulsão do andar em que viviam por não aceitarem animais mas também aos felizes passeios pela floresta ou por onde houvesse algum verde. Mais tarde chega à família outra humana, Mathilde, e mais duas cadelas, uma filha e uma ‘irmã’ prontamente acolhidas pelo afetuoso patriarca Ubac.
E a família fecha-se numa feliz bolha de 5, entre humanos e cães: “O mundo pode exaltar-se ou isolar-se à nossa volta que, egoistamente, só temos um procedimento de salvaguarda: olhar o mais perto possível este asilo ideal e contamo-nos. Cinco.”
Até que chegamos à Terceira Parte, e pronto, é o fim, em todos os sentidos. Como sabe toda a gente que tem ou já teve cães, o pior é mesmo isto: sabemos que, se tudo correr como habitualmente, a certa altura vamos ter de nos despedir deles. Podemos fazer isso e manter o coração a salvo? Não podemos.
Durante 30 páginas soluçamos descontroladamente em cada linha que Cedric se despede de Ubac.“A dança dos apoios é engraçada: tu, o quadrúpede, é que me fizeste ficar de pé. Por estas disposições e por tudo o que ainda vou descobrir no rasto da tua passagem, digo-te obrigado, que outra palavra usar?”
Agora estou aqui a escrever-vos isto, o meu cão está a ressonar no sofá, e vou ter de ir ali buscar o rolo de cozinha para me assoar. A despedida continua: ““Tu estarás ausente em todo o lado, nos lugares da memória e do desconhecido. A tua partida condena-me a fugir de olhos fechados, e tu não tens culpa nenhuma.”
E depois vem o golp de misericórdia: “Mesmo se não pudesse amar-te mais, ainda não teria de modo nenhum acabado de te amar.”Ficamos por aqui. A recuperação, para o leitor, também não vai ser fácil.
‘O cheiro dele depois da chuva’ – Cédric Sapin-Defour, Ed. Lua de Papel, E16,50