Galiza, 1900: numa noite tempestuosa, nascem no paço de Espírito Santo, duas meninas: Catalina, filha da senhora, e Clara, filha da sua criada. Para que a filha tenha uma vida melhor, a criada consegue trocar as duas meninas sem que ninguém se aperceba (a ama da criança rica é convenientemente cega). E pronto. Clara e Catalina trocam de berço e de nome. Para Clara fica uma vida de sacrifícios e uma mãe que nunca a amou, para Catalina as benesses da riqueza e uma mãe que nunca conseguiu amar.
Este é o estrondoso princípio de ‘As filhas da criada’. Até aqui não é nada que vocês nunca tenham visto numa telenovela. À boa maneira das telenovelas, a vida das meninas prossegue, e como é óbvio a pobrezinha e sacrificada é muito boazinha e a rica é uma egoísta ingrata que não merece as oportunidades que lhe são dadas. As duas – as quatro, se contarmos com as mães – serão infelizes para o resto da vida.
E então, perguntam vocês, porque é que devemos ler este livro: primeiro, porque está escrito de forma a que o próprio livro nos obriga a lê-lo, e isso já vai sendo raro nos dias que correm. A história está bem contada, tem ritmo, empatia e velocidade (embora seja um rol de tristezas).
Depois, porque mais do que a história da infeliz Clara e da ingrata Catalina, esta é a história de Dona Inés, matriarca da família e fiel esposa de Don Gustavo, que, numa época em que a maioria das mulheres ricas eram apenas donas de casa e enfeites para o marido, consegue lutar pela sobrevivência e firmar nome na indústria da pesca, que tanto teve em comum com Portugal. Depois porque, além de D. Inés, o livro traça um retrato intreressante das que não tinham nada, das ‘senhoras Ninguém’, “desconhecidas e ignoradas, ocupantes de fábricas, almas solitárias em portos e molhes”. Mesmo a figura de Clara, condenada a um destino de infelicidade apenas porque não nasceu no berço certo, nos mostra como a vida das mulheres estava de facto amarrada à sua classe social, e podia ser tão sacrificada. Clara consegue lutar pela vida que merece, mas por trás dela vemos um número infindável de mulheres pobres, trabalhadoras e exaustas.
Acima de tudo, partindo desse ‘lugar comum’ das telenovelas, o livro faz-nos pensar como o sítio onde nascemos nos condicionava (ou condiciona ainda, de certa maneira). O acesso à educação mudou muita coisa na vida das mulheres: também isso deve ser um ponto de reflexão. Filhas de criadas ou filhas de princesas, saibamos hoje dar valor à educação que recebemos, porque, como nos conta Sonsoles Ónega, isso não foi sempre assim.
Resta dizer que o romance foi vencedor do Prémio Planeta 2023. Anunciam-no como uma história de realismo mágico mas de mágico não tem nada, a não ser a escrita, que nos traz uma leitura vibrante, compadecida e muitas vezes sofrida.
‘As filhas da criada’ -Sonsoles Ónega, Ed. Planeta, E19,90