Kady canta com alma – ou não fosse a jovem uma fã da música Soul -, verdade e, acima de tudo, a perfeita consciência do peso de cada palavra. Consciência essa que acompanha, pelo menos, duas gerações da sua família.
A cantora é filha de Terezinha Araújo, fundadora e vocalista do grupo Simentera, e neta de Amélia Araújo, uma figura de destaque na luta pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Esta locutora, também conhecida como “Maria Turra” entre os militares portugueses, foi crucial para difundir os ideais do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) na Rádio Libertação, sendo considerada por muitos a voz desse movimento.
Kady deu os primeiros passos na música muito cedo, tendo conquistado o prémio de Melhor Voz Infantil de Cabo Verde num festival nacional. Da primeira atuação em público, que aconteceu na televisão e quando tinha apenas seis anos, tem uma vaga memória. “Lembro-me de, simplesmente, estar a divertir-me”, conta-nos. A diversão tornou-se algo sério já na vida adulta, depois de se mudar para Portugal. Em 2015, lançou o primeiro álbum a solo, “Kaminho”, editado pela Broda Music, e encontrou o seu nicho: o Afrosoul, um género resultante do equilíbrio perfeito entre os ritmos africanos, o Soul e o R&B norte-americanos.
Depois de participar no Festival da Canção, apresenta um novo single chamado “FLAN”. A música, cujo título significa “Diz-me”, em português, é um apelo à honestidade: fala de uma mulher que sente que o companheiro está distante e, sem rodeios (ou receios), exige saber o que se passa. Tudo com a certeza de que, mesmo magoada, será forte o suficiente para superar qualquer desgosto. Mais madura musicalmente e segura do seu propósito, a artista usa a voz para consciencializar e empoderar. Afinal de contas, está-lhe no sangue.
Como começou a tua ligação ao mundo das artes?
É uma coisa de família. A minha mãe é cantora e o meu irmão é cantor e instrumentista, portanto eu cresci nesse meio. Aliás, a minha mãe fazia digressões e espetáculos, em Cabo Verde e fora, e eu tive a oportunidade de assistir a isso tudo, bem como de ir aos ensaios e de acompanhar de perto a produção dos concertos, portanto a música e a musicalidade são coisas muito naturais para mim.
Quando decidiste que querias ter uma carreira na música?
Aconteceu já na minha vida adulta, por volta dos 25 anos, depois de eu chegar a Portugal. Vim fazer uma formação em produção de eventos, porque pensava que queria seguir essa área desde a adolescência. Ainda cheguei a trabalhar no ramo, mas o ‘bichinho da música’ falou mais alto e apercebi-me de que, afinal, queria estar em cima do palco, e não atrás dele.
Cantar em crioulo é uma extensão do teu ser?
É algo muito importante para mim. Já compus e cantei noutros idiomas, como o inglês, mas quando canto em crioulo, sinto que estou a passar uma verdade. É uma questão de identidade. Além de identificar a minha origem, é a minha língua materna e aquela que mais sinto.
Lilly Tchiumba, a tua tia-avó, participou no Festival da Canção em 1969 e tu tiveste essa mesma oportunidade 50 anos depois. Esse momento representou o fechar de um ciclo?
Foi muito bonito! Quando o Dino [D’Santiago] me fez o convite, eu nem sequer pensei nisso. Mas depois, em estúdio, estávamos a gravar e veio-me à memória que eu tinha um álbum com fotos da minha tia no Festival da Canção. Essa participação não era algo muito falado na minha família, e, inclusive, eu soube através desse tal álbum. Comentei isso com o Dino, e ele disse que os 50 anos marcam o momento em que um ciclo se fecha. Ficámos todos muito arrepiados e, claro, é um facto que tornou tudo ainda mais especial.
Foi uma experiência marcante?
Eu fui mãe pela primeira vez em 2018, portanto estive algum tempo parada. Esse festival serviu muito para reavivar a chama da música que havia em mim. Acho que foi muito especial, e até a equipa de produção comentava sobre o clima de amor à música e a energia de camaradagem que se sentia no ar. Por exemplo, os concorrentes cantavam todos juntos nos bastidores antes de entrarem em palco. Foi mesmo lindo, e são essas as memórias que vou guardar e estimar para o resto da vida.
Como é que a maternidade mudou a tua sensibilidade artística?
A partir do momento em que és mãe, sentes uma força inexplicável. Além disso, há um novo sentido de responsabilidade em relação ao exemplo que vais dar aos teus filhos, porque, acima de tudo, as crianças são aquilo que veem. Se o meu filho vir que a mãe luta por aquilo que quer e em que acredita, isso vai ser um bom exemplo para ele fazer o mesmo, independentemente do que queira ser ou fazer mais tarde.
Quais são as principais diferenças entre “Kaminho”, lançado em 2015, e o novo álbum que aí vem?
Por ter sido o meu primeiro trabalho, “Kaminho” foi uma grande aprendizagem; tinha uma grande mistura de sonoridades e mostrava uma Kady sonhadora, que queria muito estar no mundo da música. Por sua vez, o novo projeto mostra uma Kady com mais certeza do que quer fazer e do caminho que quer seguir na música. Sem dúvida, houve um grande processo de crescimento no tempo que separa os dois trabalhos.
“Empoderamento” é uma palavra que está intrinsecamente ligada a esta nova fase da tua carreira?
Sim. Para mim, empoderamento significa estar de bem com a vida, ser honesta e incentivar outras mulheres a estarem bem com elas próprias; a serem confiantes e a expressarem quem são, sem medo de serem julgadas. Até é estranho ainda termos de falar sobre isso, mas trata-se de estarmos bem connosco e de levarmos outras mulheres nessa jornada.
Como é que a voz pode ser uma ferramenta de empoderamento?
O melhor exemplo que posso dar é o da minha avó materna. Ela foi combatente na luta pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, e chamavam-lhe ‘boca de canhão’, porque ela era locutora na rádio e passava mensagens codificadas. Para mim, esse é um dos maiores exemplos daquilo que podemos fazer com a voz: ela não esteve na luta armada, mas tinha uma arma, que era a voz, para levar luz às pessoas.
“Além de entreter, a música também faz com que as pessoas reflitam. Eu tento sempre passar uma mensagem e criar canções que elevam o astral”.
Então, o teu exemplo de mulheres fortes veio de dentro de casa…
Sim, essencialmente, a minha avó e a minha mãe são as minhas referências. Elas já passaram por muitas coisas na vida. Por exemplo, como a minha avó estar na luta pela independência, a minha mãe teve de ir para a antiga União Soviética com apenas 12 anos. O que mais admiro nelas é o facto de não se terem deixado amargurar pelos dissabores da vida. Ambas são mulheres ternurentas e veem sempre o lado positivo das coisas. Isso influenciou-me muito.
São esses valores que queres transmitir ao teu filho?
Sim, esses e outros. Aqui em casa, não há tarefas de homem e tarefas de mulher; dividimo-las de forma igual. Acho que é muito importante que ele tenha esse exemplo. Além disso, claro, queremos ensiná-lo a respeitar toda a gente. Penso que já estamos num bom caminho.
Sentes que és um exemplo para outras mulheres?
Não é algo que me passe muito pela cabeça, mas recebo muitas mensagens de fãs que dizem que a minha música as faz sentir bem, ou que as ajudou a ultrapassar um momento difícil. Essa é a melhor parte da minha profissão. Se eu puder fazer aquilo de que gosto e, no processo, inspirar outras meninas e mulheres, melhor ainda.
O que gostavas que se soubesse sobre a tua verdade enquanto artista?
Eu gostava que as pessoas soubessem que aquilo que eu transmito na minha música é aquilo que eu sou. Não estou a forçar nada. Acredito muito no empoderamento e pratico-o no meu dia-a-dia, portanto, o que faço é feito com amor e transparência.