Depois da tomada de Cabul, a primeira conferência de imprensa oficial dos talibãs parecia ser um evento de homens afegãos para homens afegãos. Mas foi uma mulher loira que roubou todas as atenções ao dar início à entrevista coletiva com uma pergunta que levou o grupo islâmico fundamentalista a marcar uma posição sobre os direitos das mulheres.
Charlotte Bellis podia ser identificada com facilidade entre as dezenas de jornalistas presentes no palácio presidencial do Afeganistão, no passado dia 17 de agosto. Isto porque foi uma de apenas três mulheres a obter permissão para lá estar. E não desperdiçou a oportunidade. Num vídeo do evento, aparenta estar calma enquanto se apresenta aos novos governantes do país e coloca uma questão contundente.
“Eu quero falar convosco sobre os direitos das mulheres e os direitos das meninas; sobre se as mulheres terão permissão para trabalhar e se as meninas continuarão a ir à escola”, disse. “Que garantias podem dar às mulheres e às meninas de que os direitos delas serão protegidos?”
Como resposta, o porta-voz Zabiullah Mujahid garantiu que o Emirado Islâmico do Afeganistão reconheceria os direitos das mulheres, mas apenas sob a estrutura da lei Sharia. “As mulheres terão todos os seus direitos. Seja no trabalho ou noutras atividades, porque as mulheres são uma parte importante da sociedade”, fez saber. “Estamos a garantir todos os seus direitos dentro dos limites do Islão”.
Natural da Nova Zelândia, Bellis tem 35 anos e é correspondente da Al Jazeera desde 2019. A pergunta que fez é a mesma que milhares de mulheres afegãs desesperadas têm feito desde a tomada do poder no Afeganistão pelos talibãs.
A mera presença da jornalista neozelandesa na conferência de imprensa e o facto de se ter dirigido diretamente a um homem — ambos os cenários eram impensáveis quando o grupo extremista comandou o país pela primeira vez, entre 1996 e 2001 — podem ser vistos como rasgos de esperança para as mulheres. Porém, elas continuam a ser o segmento de população mais vulnerável com o novo governo no poder.
Já há notícias que dão conta de que os guerrilheiros estão a recrutar meninas, algumas com apenas 10 anos, como escravas sexuais. Também há relatos de mulheres que foram mortas a tiros por usarem roupas justas, escoltadas do trabalho para casa e proibidas de voltar e, em algumas localidades, proibidas de andar nas ruas sem um acompanhante masculino. Tudo isto lembra os atos de violência perpetrados contra meninas e mulheres há quase 20 anos, durante o último regime islamita.
Por enquanto, parece que o novo cenário político do Afeganistão não vai impedir Charlotte Bellis de continuar a fazer o seu trabalho. Prova disso é que a página de Instagram da repórter tem mostrado o quotidiano e a realidade daqueles que vivem numa nação mergulhada no caos. Recentemente, falou sobre as duas colegas jornalistas que também estiveram presentes na entrevista coletiva dos talibãs e descreveu-as como “mulheres muito mais destemidas do que eu”.