De sorriso grande, Tamara Klink recebeu-me bem-humorada, apesar de serem 8 da manhã e nem um raio de sol ter ainda arriscado ultrapassar as nuvens daquela manhã cinzenta de agosto. Vê-se que está acostumada aos horários e climas pouco convidativos. Chegou a Lisboa há uma semana, vinda da França. A viagem durou 8 dias. Foi feita num veleiro. Sozinha.
O facto de eu também ser brasileira fez a conversa começar bem. Tamara tem 24 anos e foi viver em França há 3 para se formar em arquitetura naval. Terminou o curso recentemente e iniciou o percurso para o grande sonho: fazer a travessia do Atlântico sozinha num veleiro. Comprou o barco em 2020 na Noruega e lançou-se ao mar pela primeira vez numa viagem até França que durou um mês, entre várias paragens. “Se eu soubesse logo de início que eu teria tantos problemas, não teria descoberto que seria capaz de os resolver”, diz-me, sorridente. “Foi uma viagem que me mostrou que eu era capaz de mais do que sempre me disseram e mais do que eu pensava ser”.
O mais difícil foi contar aos pais o que iria fazer. Tamara é filha de Amyr e Marina Klink, casal de velejadores brasileiros famosos pelas grandes expedições e pelos livros a contar as histórias a bordo. Amyr ficou conhecido por ser a primeira pessoa a atravessar o Atlântico Sul sozinho num barco a remo, em 1983. Ao longo dos anos o navegador fez muitas expedições à Antártica – numa delas levou a família. Tamara tinha 8 anos: “Foi quando comecei a interessar-me por comandar os barcos e quando comecei a receber os grandes ‘nãos’ do meu pai, que me disse que se eu queria navegar sozinha eu precisava conquistar os saberes e os meios, materiais físicos e financeiros”.
Travessia a bordo do Sardinha
O barco “Sardinha” ganhou novos ares em França, e depois de muito planeamento, Tamara saiu de Lorient a 10 de agosto, para enfim iniciar a sua viagem de travessia do Atlântico. Até Lisboa demorou 8 dias, todos a navegar sozinha. A única comunicação com terra é através de um telemóvel via satélite que só permite trocar mensagens de texto de poucos caracteres. “Quando eu estou sozinha muito tempo eu viro muitas”, conta a velejadora, que em tempos de calmaria no mar costuma escrever, ler e fazer vídeos. As imagens vão parar às redes sociais só quando Tamara se aproxima da terra e consegue apanhar um sinal de internet. Atualmente mais de 45 mil pessoas acompanham a sua jornada pelo Instagram, e também pelo localizador em tempo real.
Depois da paragem em Lisboa, Tamara segue para as Ilhas Canárias e Cabo Verde. Cada trajeto deve durar em média 12 dias, mas pode ser menos ou mais, dependendo das condições do mar e do vento: “Não podemos achar que mandamos no tempo e fazer datas precisas”, explica Tamara. O trecho mais longo da viagem vem a seguir, quando a velejadora cruzar o oceano Atlântico em direção ao Recife, no Brasil. Provavelmente vai passar 30 dias sozinha no mar. Mesmo assim faz questão de falar sempre no plural: “Como eu tenho hoje a chance de viver o meu sonho, acho importante não o viver sozinha, que este sonho sirva para outras pessoas. Estou a usar recursos do planeta, que são de todos nós. Se eu posso retribuir à sociedade e ao planeta por isso, é através das histórias”.
“Para o mar não importa se eu sou homem ou mulher”
Amyr e Marina Klink são sem dúvidas as grandes inspirações de Tamara, mas não só. Há toda uma lista de mulheres vejeladoras que também a ajudaram a sonhar. A jovem cita por exemplo a velejadora portuguesa Mariana Lobato, que representou o país nos Jogos Olímpicos de Londres em 2012. Ou a britânica Ellen MacArhur, que velejou sozinha ao redor da Inglaterra com apenas 19 anos e em 2005 quebrou o recorde de volta ao mundo mais rápida, também solo. Tamara também cita a brasileira Izabel Pimentel, a primeira latino-americana a fazer uma volta ao mundo em solitário, em 2012; a dupla de velejadoras brasileiras Martina Grael e Kahena Kunze, bicampeãs olímpicas de vela; e Heloísa Schurmann, que partiu em 1984 com o marido e os dois filhos numa volta ao mundo a bordo de um veleiro. Ser mulher não é limitador, pelo contrário. Para Tamara, é a chance de desmontar os limites que dizem que temos.
“Só me lembro de que sou mulher quando chego a um porto e as pessoas dizem: ‘Nossa, mas é uma menina!’. Ou alguma pessoa começa a querer ajudar-me a carregar as minhas próprias velas. Só aí é que eu me lembro de que sou mulher”.
Soube da jornada da Tamara através de uma amiga que estudou jornalismo comigo em Florianópolis: “Sozinha, cara! Achei tão inspirador”, disse-me. Depois da conversa com a Tamara mandei orgulhosa uma fotografia aos meus pais e à minha tia: “Uau, que corajosa!”, escreveram. Claro que a mesma palavra me passou pela cabeça quando conversava com a velejadora. “O que é estar com coragem eu não sei. Eu sei o que é ter medo, e eu tenho o tempo todo”, respondeu-me Tamara. Não o disse naquele momento, mas acredito que ter coragem é seguir em frente sem ser travado única e exclusivamente pelos nossos medos. Tamara segue apesar dos medos, e por causa de um sonho. “O sonho tem esse poder, de nos levar muito além do que existe no planeta, do que nos disseram que temos de ter, e do que achamos que conseguimos fazer. É poder ir mais longe do que achávamos que fosse possível”.