
“Dá-me uma garrafa de tinto, por favor.” Esta foi a primeira frase que Lika, 32 anos, aprendeu em português, a única que trouxe na bagagem há sete anos. “Uma frase muito importante”, diz a rir. Mas não é vinho que pedimos nesta manhã de verão que antecipa mais um dia abrasador, nem o Português é o mesmo – a forma como domina a nossa língua, apesar do sotaque encantador, surpreende-me do início ao fim da conversa. Fico a saber que a língua nunca foi um obstáculo para Lika, para cantar as músicas dos Beatles, por exemplo, ainda no Cazaquistão, com o seu inglês rudimentar e antes de ter computador com Internet e de começar a traduzir e a aprender o significado das letras. Beatles, esses que lhe foram apresentados pelos tios, que durante toda a vida encheram de ritmo a sua casa, que visitavam sempre munidos das guitarras. “Foi aí que nasceu a sua paixão pela música.
Na esplanada do Palácio Baldaya, em Benfica, saem dois cafés e duas águas para uma mesa à sombra. Mas continuo ao sol. Lika é um autêntico raio de luz, pelo sorriso tão rasgado como os seus exóticos olhos cazaques e pela alegria que percebi ao primeiro aceno. “Gosto muito de Portugal por causa dos sorrisos na rua”, haveria de me dizer mais tarde. “E dos beijinhos…” Com o seu povo não partilha a desconfiança que diz ainda existir como remanescência dos tempos soviéticos, é preciso dar tempo ao tempo.
Agora, depois de a conhecer, consigo imaginar melhor a sua história. O dia em que, seduzida pela música, entrou no entretanto encerrado Café Tati, no Cais do Sodré, e pediu para participar na jam session e como terá desde logo conquistado os músicos do Hot Clube que ali tocavam. Era a sua primeira vez em Lisboa e viajava sozinha. Ou melhor, na companhia de sempre, a sua Fender Stratocaster branca. Portugal, pelo mistério. “Queria conhecer um sítio especial e nas aulas de Geografia tinha aprendido sobre os Descobrimentos, era o fim do mapa.” Assim se abateram as montanhas de Almati num tapete muito azul.
No Cabo da Roca, senti algo que nunca tinha sentido na minha vida, tanta liberdade, senti-a quase fisicamente.” A inspiração chegou em ondas e não apenas vindas do mar. “
“Os jacarandás, as ruas de Alfama… estava tão inspirada que comecei logo a escrever canções. Pensei ‘se este sítio tem esta energia, tenho de ficar…’.” Uma semana em Lisboa bastou para Lika querer mudar toda uma vida. Voltou ao Cazaquistão para ir buscar as suas coisas, mas não conseguiria trazer consigo o mais importante, a única coisa que refreou a sua determinação e a obrigou a um compasso de espera. Se fosse uma pauta, teria talvez a duração de uma semibreve. “A minha família mais próxima é a minha mãe e tinha medo de a deixar. Mas quando tomei a decisão de ficar, ela disse ‘Se tu não fores, ponho-te fora de casa’.” Hoje, diz estarem mais próximas que nunca, e todos os anos recebe a visita materna em Lisboa. Cazaquistão deixa saudades pela família e amigos mas também pela natureza avassaladora, em muito dominada pela imponência das montanhas que se cobrem com neve mesmo que na cidade estejam 40 graus.
MAGIC WOMAN
Voltamos à visita fortuita ao Tati português, onde naquela noite se começou a compor um novo fado, ou melhor, o novo swing de Lika. Foi lá que conheceu um de dois Brunos essenciais – este mudou a sua batida musical, o outro, a batida do seu coração –, mais precisamente Bruno Santos, professor e diretor no Hot Clube. Foi ele que, juntamente, com o trompetista e professor Gonçalo Marques, lhe deu os primeiros acordes para a improvisação mais importante da sua vida. “Tive mesmo sorte, ajudaram-me muito.”
Fala sempre de sorte quando se refere aos professores que teve ao longo dos anos, embora alguma da sua sorte tenha sido feita com horas e horas em dueto com o YouTube. Sorte, os professores que teve na primeira escola de música, clássica, que frequentou; sorte, o baterista mais velho que conheceu numa orquestra para jovens e que a apresentou a tão grandes inspirações como Jimmy Page – a ele tantos outros se seguiram, como o guitarrista Les Pauls; sorte, os docentes que apanhou no Tchaikovsky Almaty Music College, onde se inscreveu logo que terminou o curso na área de Economia, que num antigo disco de vinil seria o lado B de um futuro que a mãe quis assegurar.
Mas o lado A tocou mais alto. “Sempre tive as minhas bandas, uma de originais – comecei a escrever canções quando era mesmo miúda – e demos alguns concertos em bares. Ainda trabalhei numa banda de casamentos.” Também poderia ser A de Amealhar, pois foram esses ‘gigs’ que lhe permitiram poupar dinheiro para vir para Portugal.
Mas a sorte refere-se agora aos seus professores do Hot Clube, que rapidamente se tornaram na sua família portuguesa. “Eles e os colegas levavam-me para todos os concertos, ajudaram mesmo na minha integração na sociedade… é mesmo do coração.” As palavras não lhe chegam e Lika acrescenta-lhes força com a sua expressividade. Esteve um ano na escola de jazz portuguesa. “O meu professor Miguel Barrosa (agora guitarrista da sua banda) fez comigo aquilo que eu precisava. Eu estava um bocadinho perdida, gostava de tudo e queria estudar tudo…”
Imbuída do espírito musical incutido por Lika à minha frente (e por um daqueles ímpetos que me fazem sempre lembrar a minha ex-colega Cristina Tavares Correia; dar-lhe uma palavra era como dar-lhe o tom para ela começar a cantar em plena redação), vem-me à mente o hino cristão ‘Amazing Grace’ e o seu ‘I once was lost but now am found’. Lika nem sequer tem religião propriamente dita, apesar de acreditar em algo superior. “Somos todos instrumentos de qualquer coisa, cada um chama o que quer, Deus, Cosmos, Universo. Por sua vez, a guitarra é o meu instrumento, através do qual me expresso, algo sai de mim através das pontas dos dedos, vai para a guitarra, sai pelos cabos e vai para o amplificador, é toda uma magia.” Expulso ‘Magic’ dos Coldplay da minha cabeça mas continuamos a falar do processo quase mágico que pode ser compor uma canção, um processo quase informático. “Tenho sempre um bloco-notas comigo, inspira-me tudo, pode ser uma frase de alguém que passa por mim na rua… Essa frase fica na cabeça e depois parece que é um computador, começo a associar aquela frase a outras frases e essas palavras começam a criar alguns versos na minha cabeça. Nestes momentos, se estou na rua, quero logo voltar para casa e ir para o estúdio com a minha guitarra. É um sentimento fantástico.”

RECOMEÇAR
Quando chego para a entrevista, uma das primeiras coisas que Lika me diz, no seu jeito espontâneo e sorridente, é que estamos as duas com um vestido de flores. Volto a olhar para o seu vestido e pele à mostra quando lhe pergunto se é diferente ser mulher em Portugal. O sorriso fecha-se momentaneamente. “Aquilo de que eu não gosto agora no Cazaquistão é que ultimamente têm aparecido muitas influências do Islão. Não o dizem abertamente, mas a importância da mulher na sociedade está a diminuir, vejo fotos antigas das mulheres cazaques com a cara destapada, cabelo longo e solto… e agora estão a tentar tapá-las. Não faz sentido. Aqui, sinto-me muito confortável.”
Lika diz que já se sente confortável o suficiente para sentir em português, o que já lhe permite compor na língua de Camões. Não aprendeu na escola, mas antes com a vida – também com Florbela Espanca e Fernando Pessoa – e da maneira mais dura. “Proibi de falarem comigo em inglês e ao início foi muito difícil. Chegava a casa tão frustrada que tinha de ligar às minhas amigas só para falar em Russo.”
Carrega no R para dar mais ênfase e lembra-me o tanto que o Russo e o Português partilham em sonoridade. De vez em quando há uma ou outra palavra que lhe falha, mas durante a nossa conversa nunca se atrapalha, assim como não se atrapalhou quando teve de desenhar um cavalo – “o que eu fiz foi mais um gato” (risos) – a uma senhora que interpelou na rua para perguntar onde era o talho. A ideia era comprar carne de cavalo para fazer um prato típico da sua terra chamado beshbarmak. (Antes de hastear a bandeira dos direitos dos animais, há que atender à cultura: “Éramos um povo nómada, não tínhamos por ali bacalhau nem polvos, comíamos o que havia.”)
Mas apesar de já compor em português, o seu primeiro álbum, ‘Back to Zero’, ainda não inclui canções na nossa língua. O nome remete para o recomeço, para a nova vida que para Lika começou em Lisboa.
Voltei para o zero, fiz novos amigos, conheci muita música nova, portuguesa, brasileira, africana. Eu já tinha a minha vida bastante feita no Cazaquistão, mas vim para cá para aprender mais. Este álbum é isso mesmo: nota-se a influência de tudo o que eu passei cá mas também de tudo o que trouxe comigo. Continuo a ser do Cazaquistão, mas já sou diferente.”
Invariavelmente, as suas frases começam com “conheci alguém”, mas seria injusto atribuir o seu destino a uma sequência de acasos felizes em demérito de uma espécie de aura mágica que Lika parece possuir. A forma como toca guitarra – como usa os dedos mais do que a palheta – foi o que levou alguém a convidá-la a ir aos EUA dar uma Masterclass, e na Califórnia conheceria ‘outros alguéns’ que trabalhavam em dois dos estúdios mais famosos daquele Estado. ‘Back to Zero’ foi gravado em Portugal mas a mistura foi feita no estúdio LAFX e a masterização no Golden Mastering, pelo que Lika se orgulha não só das canções mas também da excelente qualidade de gravação.
AMOR NO AR
Não se assume extrovertida nem introvertida, mas assegura que há pessoas que a fazem falar. E, ao que parece, eu sou uma delas. Aproveito o embalo e pergunto-lhe sobre o outro Bruno, o tal do bate bate coração. Não julguei possível um sorriso maior, mas ele aí está. “O Bruno viu um vídeo meu no Facebook e enviou-me uma mensagem. Conhecemo-nos em fevereiro e casámos em agosto, fez este anos 3 anos. É o meu melhor amigo.” Bruno Neto, 40 anos, “gestor que já geriu quase tudo”, incluindo missões humanitárias em mais de 30 países, e que viveu dois períodos de quarentena em África devido ao Ébola. É também ele que gere a carreira de Lika.
A cantora lançou o seu primeiro álbum, ‘Back to Zero’, em dezembro de 2019 e durante a fase aguda da pandemia deu alguns concertos a partir de casa e aproveitou para desenvolver a vertente digital do projeto, criando uma loja com o seu merchandising e cursos de aulas de música online ((lika.world). Mas de que gosta mesmo é de tocar ao vivo. “O meu público são as minhas asas e quando toda a gente começa a cantar tenho a sensação de estar a voar. Fico arrepiada.” É nesta altura que Lika começa a cantar o refrão do tema ‘Thousand’. Agora sou eu que me arrepio. Angelica é o seu verdadeiro nome. Também não será por acaso.