Não é portuguesa, mas Ilze Amândio fez de Portugal casa e amor. Foi cá que transformou sonhos em realidade e que, enquanto mãe, percebeu a falta de conteúdos divertidos e educativos, falados em português, para crianças em idade pré-escolar. Esta ausência fê-la notar uma tendência crescente e extremamente preocupante de crianças que começam a trocar a sua língua materna pelo português do Brasil, por estarem tão habituadas a verem conteúdos online falados em brasileiro. Todas estas condicionantes levaram-na a criar o Tutices, um canal no Youtube com conteúdos pensados ao pormenor, onde se estimula a criatividade, a curiosidade e se promove a pedagogia. Tendo isto por base, a ACTIVA online falou com Ilze sobre este projeto, mas a conversa estendeu-se a muito mais, sendo sempre a entrega, o amor e a preocupação com as nossas crianças o fio condutor desta entrevista.
Embora Portugal não lhe fosse estranho – já tinha estudado no Porto – adotou o nosso país como casa por amor. Pode partilhar connosco essa aventura?
Foi no, agora longínquo (e digo-o com o tão famoso sentimento de saudade Português), inverno de 2008 que conheci o meu marido, Nuno. Nesta altura com 22 anos, vim para o Porto estudar na Universidade Fernando Pessoa. Encontrámo-nos numa festa, por acaso do destino, uma vez que ele estava no Porto apenas para passar o Natal. Também ele morava e estudava fora. Foi atração à primeira vista. No entanto, depois de um ano juntos percebemos que manter uma relação à distância não era para nós e decidimos seguir as nossas vidas separadas. Estudámos, viajámos, começámos a nossa vida profissional, vivemos o que tínhamos a viver e, cinco anos depois, num regresso ao Porto, tudo recomeçou. A paixão nunca tinha desaparecido. Estava só à espera que o ano de 2014 chegasse para que, os dois, nos mudássemos para o Porto.
E foi fácil tomar a decisão de deixar o seu país e de arriscar dar este salto de fé (e de amor)?
Mudar para Portugal na altura foi fácil, não tinha dúvidas da decisão a tomar. O amor era incontornável. O mais difícil veio depois. Ser mãe de dois filhos com idades muito próximas, num país diferente e sem apoio do meu círculo familiar foi tarefa árdua. No entanto, nunca me arrependi. As dificuldades tornam-nos mais fortes.
Como foi a adaptação ao nosso país e o que lhe causou mais estranheza nos nossos hábitos e costumes?
Nove anos depois não posso dizer, ainda, que me sinta inteiramente adaptada a este país. Saber falar português ajuda, mas a adaptação demora. No início, o hábito que mais estranhei, e que agora não quero deixar e me sinto completamente adaptada a ele, é o da adesão (quase religiosa) às diferentes refeições do dia. Na Letónia as refeições não são vistas como algo importante ou tão pouco prioritário. É frequente saltar refeições e comer apenas quando nos apetece. Agora sinto-me mais equilibrada nesse sentido. Também estranhei (positivamente) a quantidade de sobremesas no Natal. Por outro lado, foi, por exemplo, difícil aceitar que a escola em Portugal começa obrigatoriamente aos seis anos (na Letónia o ensino obrigatório começa aos sete). O ensino básico também me parece rigoroso de mais para crianças tão pequenas obrigando-os a períodos prolongados onde é exigida concentração constante e a excessivos trabalhos de casa. Na Letónia, para ter uma ideia, uma aula dura 40 minutos desde a primeira classe até ao 12º ano.
São na minha opinião crianças muito pequenas que necessitam de tempo para brincar e cuja capacidade para lidar com a pressão, ansiedade e stress entre outros está ainda por desenvolver.
Percecionando essas diferenças tão grandes, e que têm um verdadeiro impacto nos miúdos, de que forma tenta dar a volta, enquanto mãe, a todos os condicionantes que exigem às nossas crianças um ritmo de trabalho demasiado pesado?
O trabalho escolar e as horas letivas são longas e demasiado exigentes para as crianças desta faixa etária, já para não falar no volume de trabalhos de casa. Há mais para além da escola que os torna mais ricos, como seja o desporto ou a aprendizagem musical. Mas, infelizmente, não posso, ou melhor, não podemos mudar o sistema escolar. Por isso, a melhor estratégia é mudar a nossa atitude. Regra geral, tendo a não exercer pressão por causa de trabalhos de casa não concluídos ou de pequenos insucessos académicos. Asseguro-me sim de que têm a noção de que são e serão sempre muito amados, independentemente do seu bom ou mau desempenho escolar, e que nunca duvidem de que serão capazes de aprender tudo. Concentro-me em ajudá-los a descobrir os seus próprios interesses e talentos, em vez de os pressionar para que se saiam bem em todas as disciplinas da escola.
Que diferenças sente, enquanto conhecedora dos dois sistemas escolares, nas crianças? Ou seja, que impacto tem o sistema escolar nas crianças, quando comparado com o que conhece da realidade do seu país?
É difícil comparar o impacto nas crianças de dois sistemas diferentes, seria necessário um estudo adequado para falar sobre este assunto. As minhas observações são apenas opiniões subjetivas, mas o que noto em geral é que, culturalmente, as crianças e as pessoas, em geral, têm mais tempo de convívio. Na Letónia, por exemplo, as crianças convidam os amigos mais próximos para os seus aniversários, mas aqui o costume é convidar toda a turma e fazer uma grande celebração – algo de novo para mim.
Foi, também, enquanto mãe que percebeu que existia uma lacuna em termos de conteúdos online para crianças. Como é que passou desta perceção para a vontade de criar um canal de Youtube para os mais novos?
Para mim sempre foi importante que os meus filhos aprendessem a falar a minha (e sua) língua materna. Encontrei o Tutices (Tutas Lietas em Letão) enquanto estava grávida do meu primeiro filho e senti que os seus conteúdos didáticos e a sua apresentação atrativa iriam facilitar a que os meus filhos aprendessem a sua língua materna. Foi muito fácil ser cativada pela qualidade dos conteúdos do programa, os quais achei educativos e divertidos. Os meus filhos ficaram viciados no programa e o mesmo foi, durante alguns anos, a nossa primeira escolha como opção para o tempo pré-definido que passavam ao ecrã. No entanto, depois de falar com vários educadores e terapeutas da fala percebi que este tipo de opções, em português, não abundam. Em alguns casos não existem mesmo. É atualmente aceite, por uma variedade de profissionais de diferentes campos de atuação, que as crianças de hoje estão a moldar o seu sotaque ao Português do Brasil que deriva da crescente popularidade do conteúdo brasileiro entre o público mais jovem e da consequente escassez de conteúdo em Português Europeu. Citando a terapeuta da fala Andreia Tavares, “o mais problemático, é que as influências vão para além do sotaque, vemos marcas na construção frásica e mesmo no vocabulário usado, tendo muitas vezes dificuldade em recorrer ao termos adequados em Português Europeu. Esta falta de qualidade no conteúdo linguístico e morfossintático a que as nossas crianças são expostas e, tendo em conta que o fator inicial de aprendizagem é a exposição à língua e só depois às suas regras escritas, traduz-se numa incorreta aprendizagem, causando alterações na linhagem oral e, posteriormente, na escrita”.
Essa é, de facto, uma preocupação crescente. Mas de que forma é que os vídeos e os conteúdos do Tutices se destacam e diferenciam dos outros existentes para esta faixa etária?
O que destaca o Tutices é a originalidade da narrativa, estética e apresentação. Tudo é pensado ao detalhe do mais pequeno pormenor.
Numa altura em que nos debatemos com o tempo que as crianças passam em frente de um ecrã e com aquilo a que têm acesso online, é cada vez mais importante escolhermos de forma criteriosa o que os miúdos veem e quanto tempo o fazem?
Na idade pré-escolar ainda temos o “controlo do comando” e podemos escolher os conteúdos de acordo com as nossas normas de qualidade. O problema começa depois da idade pré-escolar, quando o tempo de ecrã, com conteúdos escolhidos pelos nossos filhos, nem sempre está de acordo com os nossos objetivos. No nosso caso, por exemplo, agora que os nossos filhos têm seis e oito anos, é muito mais difícil controlar e lidar com o tempo de exposição ao ecrã e com as escolhas dos conteúdos. Eles são mais exigentes, começam a querer ver determinados programas e torna-se mais difícil gerir tudo isso. Para além de que quanto mais tempo passam dentro de casa mais querem ver TV. E durante as férias, quando as rotinas se quebram, fica ainda mais complicado. Sem as suas atividades diárias, em dias de chuva (que mesmo no verão na Letónia não são assim tão raros), a TV é o foco constante da sua atenção.
Qual foi a sua inspiração para criar este projeto?
Lembro-me de perguntar no “chat” da sala de aula do meu filho quais os programas que recomendariam em português para os nossos filhos e de ficar perplexa por “ver” apenas duas ou três recomendações, sendo duas delas em brasileiro. Percebi, logo na altura, que existia (e ainda existe) uma lacuna nos conteúdos em português para crianças em idade pré-escolar e foi quando pensei: “talvez haja espaço para o Tutices em Portugal”.
Gostava de criar algo novo e diferente para as crianças portuguesas. Algo com qualidade. Foi esta a minha motivação. Mas a inspiração veio dos meus filhos quando via a sua alegria a ver o programa. Como conhecia a criadora do programa original na Letónia, foi fácil adaptar a primeira temporada para Portugal, após escolher a talentosa atriz portuguesa Inês Fonseca. Obtivemos comentários fabulosos, agradecimentos e votos de felicidades para o programa vindos dos pais dos nossos espetadores – o que foi muito bom para nós – e estamos agora a tentar perceber se existe um lugar no mundo da TV para o Tutices, porque sem o apoio nacional é difícil continuar a produzir os seus conteúdos.
Este projeto tornou-se quase numa missão?
Exatamente! Neste momento, o Tutices parece-me uma missão e o feedback tão generoso que temos vindo a receber dá-me a grande esperança de que este projeto é e será muito útil para os nossos pequenos.