Não se deixe enganar pelo ar jovem e descontraído desta pintora de causas. Da Altice Arena à Palestina, de Londres às Honduras, a sua missão é levar-nos com ela por um caminho tão incómodo como necessário – é esse o poder da sua arte.

Fotos: João Lima

Todos os meses lhe trazemos histórias que consideramos inspiradoras, pelo potencial que têm para influenciar positivamente as nossas vidas. Muitas vezes não tem tanto a ver com a história em si, com aquele contexto específico, mas há algo nela que nos dá vontade e coragem para recuperarmos algum propósito existencial. O mesmo aconteceu com Rita Andrade naquela noite de 2018 em que, na Altice Arena, assistiu ao concerto do músico e ativista Roger Waters. Depois disso, nada mais seria como dantes. “Foi ele que me apresentou à causa palestiniana. Voltei para casa abalada. Descobri o impacto que a arte, neste caso a música, pode ter nas pessoas e que pode ser muito maior do que qualquer discurso. Fiquei de tal maneira emocionada que pensei que era mesmo aquilo que queria fazer. Queria ser como o Roger e usar também eu a minha arte para criar impacto.”

Nessa altura, Rita já frequentava o curso de Pintura na Faculdade de Belas Artes de Lisboa – tirando o bisavô, o pintor viseense José de Almeida e Silva, não tem conhecimento de mais artistas na família. Decidida a visitar a Palestina, em 2019, não foi difícil convencer a mãe, também Rita, e o irmão, Manuel, três anos mais velho, a escolher aquele destino para a viagem de família anual. Quinze dias foram suficientes para que Rita regressasse com uma nova missão artística: o ativismo. “No quarto ano, foi quando comecei a fazer o que queria. Antes disso, não gostava muito do que pintava, fazia mais para agradar os professores.”

A viagem

Desde 7 de outubro que Rita Andrade, 25 anos, e os seus quadros têm recebido renovada atenção. “Ganhei 500 novos seguidores no Instagram, tantos para me apoiar quantos para me deitar abaixo.” Das 24 telas alusivas à causa da Palestina que tinha, já só restam 4, e neste momento está a doar 30% do valor da venda à Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).

Os quadros são do ano 2000 e foram pintados para o trabalho de fim de curso, todo feito em pleno confinamento pandémico. “Finalmente tinha encontrado o que queria fazer e veio a covid…” Só este ano, na exposição ‘Identity and Land’, na Faculdade de Belas Artes, é que os seus professores tiveram oportunidade de os ver ao vivo e testar o seu verdadeiro impacto, algo difícil de sentir através de um ecrã de computador.

A viagem ao Médio Oriente impressionou a jovem pintora logo à chegada ao aeroporto de Telavive. “Mal liguei os dados móveis vi uma mensagem de uma amiga que já ali havia estado a avisar-me de que me iam fazer muitas perguntas e para não mencionar que fazia tenção de ir a território palestiniano. Como não tínhamos nada muito planeado, foi fácil omitir essa parte.” Tais intenções foram também omitidas aquando do aluguer do carro. Rita diz que “percebeu logo que estava num sítio diferente” quando uma segurança agarrou o braço da mãe, preparava-se esta para tirar uma fotografia à “bonita” entrada do aeroporto.

Já em Jerusalém, cidade sagrada para cristãos, judeus e muçulmanos, Rita Andrade ficou impressionada com a quantidade de militares armados na mesquita de Al-Aqsa, onde aos muçulmanos são impostos horários para rezar. “Senti-me bastante intimidada.”

Rita e a família ficaram numa parte árabe da cidade sagrada e no hotel dar-lhe-iam o contacto de um taxista palestiniano que os levaria até Belém. A grande parte dos turistas costuma ir de autocarro, em excursões, pelo que vai diretamente para a Basílica da Natividade. Mas o taxista que os transportou fez questão de lhes fazer uma visita guiada ao Muro da Cisjordânia. Rita jamais esquecerá as pinturas originais de Banksy, ali mesmo, perfeitamente contextualizadas, num museu a céu aberto. “Aquela da flor está na parte de trás de uma oficina, virada para o muro. E numa brecha muito pequena do muro estão dois anjinhos a tentar abrir caminho.” O The Walled Off Hotel – que é também um museu, onde se encontram várias obras do artista de rua incógnito, também deixou a sua marca no álbum de viagem de Rita. “Sai-se pela porta e bate-se praticamente com o nariz no muro. “Há uma sala em que o telefone toca e nós atendemos. É uma gravação real das tropas israelitas a dizer que temos X tempo para sair antes de bombardearem a zona. Se eu já fiquei aterrorizada, imagino as pessoas que na realidade a ouviram.”

Foi na visita à Basílica da Natividade que Rita conheceu um palestiniano cristão com que ainda hoje mantém contacto. “Ele conhecia muito bem o Padre Nuno aqui de Cascais, vem cá todos os anos para vender presépios feitos pelas famílias cristãs de Belém e assim ajudar a sua comunidade. Ele acabou de chegar a Portugal, conseguiu fugir, teve de ir até à Jordânia porque os palestinianos não podem viajar por Telavive. Mas veio só ele, teve de deixar lá a família. Como este ano está sozinho, tenho tentado ajudá-lo a vender os presépios.”

Há um quadro – que pertence a esta coleção da Palestina – que retrata Rita de costas a contemplar Jericó, na Cisjordânia, considerada a cidade mais antiga do mundo. O instante foi captado em fotografia pela mãe. Sentada no amontoado de pedras de Jericó antiga, Rita emocionou-se.

“Foi um dos sítios mais pobres e miseráveis onde já estive, ao ouvir o chamamento de uma mesquita desabei em lágrimas, ali estava eu a olhar para o início e para o fim da civilização.”

Ainda assim, Rita Andrade afirma ter visto pouca negatividade num povo que já passou por tanto. A caminho de uma igreja que ficava no alto de uma enorme colina, o trio português decidiu subir a pé, ao contrário dos restantes turistas, que o faziam de carro. “O caminho era por uma escadaria enorme, muito íngreme, e deviam estar uns 40 graus. Era por uma zona residencial árabe e não nos cruzámos com praticamente ninguém. Quase de gatas, lembro-me de ver uns miúdos a olhar para nós – uma mãe e sete crianças, todos com garrafas de água para nós, a meio porque quase que não tinham para saciar a sua própria sede. Não falavam inglês, a mãe ficou no alpendre a olhar para nós enquanto ficámos ali a ‘conversar’ com as crianças. Ao início são um pouco desconfiados, mas quando têm oportunidade de fazer contacto, são pessoas bastante abertas.”

‘Diaspora’, acrílico e pastel de óleo sobre tela (70cm x 100cm)

Arte e política

Converso com Rita num soalheiro dia de inverno. Combinamos em sua casa, na zona de Cascais, onde vive com a mãe e o irmão. Sentamo-nos no sofá da sala, enormes janelas dão para um jardim impecavelmente relvado e com uma piscina que, nesta altura do ano, de convidativa só tem a cor, já que a imagino bem gelada, contrastando com o calor do enorme sorriso com que Rita me recebe. Agradece-me vezes sem conta a oportunidade de me contar a sua história e mostrar o seu trabalho. Todos sabemos que é difícil ser artista em Portugal, ainda mais quando se tem uma causa a defender. Voltou há ano e meio depois de fazer um mestrado em Arte e Política na Goldsmiths, University of London, um rumo traçado pela sua experiência na Palestina. Acabada a licenciatura, fez um ano sabático para juntar dinheiro. “Apesar de ser uma privilegiada, não é fácil pagar um curso destes e tive que trabalhar para isso.”

Durante esse ano, Rita trabalhou com cavalos – a sua outra paixão – e percebo então porque, quando entramos em casa, somos acolhidos por um enorme cavalo pintado diretamente sobre uma parede (até 21 de dezembro, a sua arte equina encontra-se em exposição no Centro Hípico da Beloura). “Sou cavaleira, monto desde os sete anos e de há uns anos para cá comecei a treinar cavalos e miúdos.” Durante esse ano, organizou também a sua primeira exposição a solo com os quadros da Palestina, nos quais continuou a trabalhar mesmo depois de terminado o curso de pintura.

O mestrado foi mais difícil do que estava à espera. “Era um curso muito teórico, muito intenso, eram temas muito pesados, sobre conflitos, traumas pós-guerra. Estive praticamente um ano sem pintar, era só ‘marrar’. Era um curso de dois anos, mas teve de fazê-lo em metade do tempo, por causa do Brexit, que levou a uma redução na duração dos vistos dos estudantes estrangeiros.

Apesar de difícil, o curso não desiludiu, ao contrário de Londres. “Aprendi imenso, mas não gostei de viver lá. Não me senti muito bem-vinda, os colegas, entretanto, voltaram para as suas terras e eu tinha uma rotina diferente da das pessoas com quem partilhava casa. Senti uma solidão imensa.”

‘Carrying Bags’, acrílico e pastel de óleo sobre tela (90cm x 150cm)

Emocionalmente esgotada

Na parede oposta ao confortável sofá onde conversamos está uma enorme pintura. Embora bonita, a realidade que representa é tudo menos bela. No quadro há duas crianças – a menina tem às costas uma mochila e o menino um saco. Em frente, dois autocarros amarelos, outrora usados como transporte escolar nos Estados Unidos.

“Em vez de irem para a escola, as crianças são obrigadas a vender fruta nesses autocarros, que nas Honduras servem como transporte público.”

A tela ‘Carregar Malas’ – inspirada no seu trabalho de campo nas Honduras – faz parte da coleção que Rita fez para a sua tese de mestrado. “No curso nunca abordámos a América Central, por não ter um impacto tão direto na Europa. Tinha uma amiga que conhecia um hondurenho que lhe tinha falado da situação das crianças naquele país. Assim, propus ir às Honduras. Encontrei uma ONG que quis colaborar comigo – a educate., fundada por uma holandesa e que investe na educação – constrói escolas e bibliotecas – como forma de tirar os miúdos da rua e evitar que sejam seduzidos pelos gangues da droga. Fui em junho de 2022 e fiquei lá 15 dias. O meu irmão veio comigo. Primeiro a minha mãe ficou mais descansada por eu não ir sozinha, mas depois pensou melhor e concluiu que em vez de ficar sem um, ia ficar sem os dois filhos.” (risos)

Ao longo da nossa conversa sou traída pela semântica, de repente sai-me um ‘que engraçado’, tão inapropriado que me sinto obrigada a retificar. “Foi o pior sítio em que já estive em toda a minha vida e não tenho arcaboiço para lá voltar tão cedo. Adormecíamos ao som de tiros, os rostos dos miúdos, uns com fome, outros em perigo, muitos trabalham desde pequeninos. Fomos na altura das chuvas, estava sempre escuro… Nas ruas, sentia-se a tensão, era como se, de repente, alguém armado fosse sair das sarjetas e dar-nos um tiro. Odiei ver tanta miséria e não poder fazer nada para ajudar. Passado uma semana já estava emocionalmente esgotada.” Se teve medo? “Não era medo, estava anestesiada, enjoada de tanta miséria.”

Rita e o irmão ficaram em casa de Adonai, um conhecido da tal holandesa benemérita, num bairro de El Progreso. Era um T0, com a cozinha mesmo em frente a uma cama de casal. “Dormíamos na cama dele e ele no chão. Deu-nos tudo, do muito pouco que tinha.”

O tom de Rita muda, numa urgência repentina, como se um rio de palavras se preparasse para galgar as comportas ainda fechadas. “Tenho de contar esta história!” É sobre o irmão de Adonai e o relato ilustra bem a violência a que os hondurenhos estão sujeitos todos os dias. Ele trabalhava no óleo de palma e caiu de uma palmeira gigante e ficou sem um braço – teve de pôr uma prótese de metal. Considerado inapto para trabalhar, começou a passar dificuldades e juntou-se às Maras, gangues criminosos, muitas vezes transnacionais. “Adonai aconselhou-o a sair, mas quando uma pessoa se junta às Maras já não sai, porque, se o fizer, não só ela como toda a família fica ameaçada.” Por essa razão, o anfitrião de Rita se vira obrigado a mudar de vida. “Os dois irmãos mantiveram o contacto, mas há um dia em que Adonai deixa de receber notícias. Passados alguns meses, liga a televisão e vê nas notícias um corpo totalmente carbonizado à beira-rio, com unhas e dentes arrancados. O corpo estava irreconhecível, mas a prótese foi suficiente para que pudesse ser identificado.”

Rita terminou o seu mestrado com nota máxima e com uma coleção de quadros que ainda voltaram às Honduras para serem exibidos e vendidos, com o valor a reverter para a ONG que fez parte do projeto. “É um país com tão baixos recursos que apenas vendemos os mais pequenos.” Ainda por cima as exposições coincidiram com manifestações, nas Honduras muito comuns e que facilmente descarrilam para a violência. Com as obras novamente em sua posse, Rita tenta agora que alguma galeria em Madrid se interesse pela causa, já que a comunidade hondurenha é ali maior.

A exposição Reflect vai inaugurar na Sestante Art Gallery, em Cascais, dia 1 de março

Causas apartidárias

Desde pequena que Rita Andrade lida mal com as injustiças. “Às vezes até me criticam por ser mais dura com quem me está mais próximo! (risos) Gosta de compreender o que se passa no país e no mundo, contando muitas vezes com a ajuda da mãe. “São coisas que não se aprendem na escola, é preciso querer saber para aprender.” A política interessa-lhe, mas garante que não apoia partidos. “Apoio causas, é o que me move. Estes temas não devem ter cores políticas, são questões humanitárias que tocam a qualquer pessoa que tenha coração.” As exposições que fez até agora foram um sucesso também desse ponto de vista, já que contou com o apoio de personalidades de vários quadrantes políticos, como PCP e Iniciativa Liberal. A da Palestina até recebeu a visita do embaixador palestiniano em Portugal.

Para março a jovem pintora prepara a exposição Reflect, a realizar-se na Sestante Art Gallery, em Cascais. “Quis fazer um intervalo nos temas específicos e falar mais sobre como podemos ser ativistas na nossa própria casa, na nossa rua… Não temos de ir para o outro lado do mundo. Trata-se de um novo projeto de pintura de espelhos que contém as suas próprias mensagens mas que também nos permitem olhar para o nosso reflexo. A ideia é desafiar quem vê a refletir sobre o seu papel na sociedade.”

Terminamos a nossa conversa em andamento e Rita faz-me uma visita guiada ao seu atelier. Identifico Roger Waters numa das telas. Já foi atrás dos seus concertos para Espanha, República Checa, Brasil… “Quando disse que era louca por ele é porque sou mesmo! É o meu maior ídolo. Gostava de ir agora vê-lo à América do Sul, mas não tenho dinheiro. Acusado de antissemitismo, está a ter dificuldade em marcar hotéis no Uruguai e na Argentina. É a censura. Estamos a falar de direitos humanos, como é que pode haver dois lados sobre isto?!”

Rita confessa-se muito abalada com os últimos acontecimentos em Gaza mas mantém alguma esperança na humanidade. “Nunca vi o mundo tão atento à causa palestiniana. Às vezes, o preço da liberdade é a morte. As pessoas estão a abrir os olhos e os crimes de guerra não vão passar impunes.” Ela continuará a fazer a sua parte. “O meu objetivo é que reconheçam o meu trabalho, continuar a sensibilizar através da arte, que tem um impacto que é único: três pessoas a olhar para o mesmo quadro podem ter sensações diferentes e isso é lindo, é o que mais gosto no que faço.”

Break The Chain, acrílico e pastel de óleo sobre tela (80cm x 120cm)

Para saber mais, visite o site da artista em www.ritaandradestudio.com: 50% da venda das telas em apoio à Palestina serão doados à UNRWA – United Nations Relief and Works Agency


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