Qualquer que seja o papel que lhe deem, por mais pequeno que seja, Viola Davis transforma-o numa personagem memorável. A foto principal deste artigo mostra-nos uma mulher forte, uma estrela de cinema, uma atriz que pertence ao Olimpo dos atores, uma rainha, e nem por um segundo sequer poderíamos imaginar o tanto que ela já passou para chegar à consagração dos dias de hoje. Conhecemos esse passado porque ela assim o quis. No início da pandemia, a atriz conta numa entrevista especial a Oprah – e que está na Netflix -, que teve uma crise existencial, sentia-se isolada, desligada, um sentimento que vinha já desde algum tempo mas que a pandemia exacerbou. Foi por isso que decidiu encontrar-se, conhecer o seu verdadeiro eu, revivendo a história da sua vida, o seu passado, através das memórias. Durante meses, à noite, sentou-se à secretária no seu escritório e deu início ao livro ‘Finding Me’.
Viola Davis nasce em 1965, na Carolina do Sul, numa casa da plantação onde viviam os seus pais e os seus irmãos mais velhos. As condições de vida eram péssimas, por isso decidiram vir para norte, para Rhode Island, onde o pai encontrou trabalho como tratador de cavalos de corrida, e a mãe, como criada e, ocasionalmente, empregada numa fábrica. Mas o dinheiro mal dava para sobreviver. As condições da casa eram degradantes, o papel das paredes em madeira estava a pelar, a canalização congelava no inverno, não havia dinheiro para o aquecimento e os invernos em Rhode Island são duríssimos, com muitos graus abaixo de zero e neve…
Quando andava no terceiro ano, mal tocava a campainha desatava a correr para casa porque sabia que atrás de si viria um grupo de 7-8 rapazes aos insultos, a chamá-la de “preta e feia” e a atirar-lhe pedras.
Viola e as irmãs iam muitas vezes para a cama com fome e, como se não bastasse estas condições miseráveis, o prédio estava infestado com ratos que à noite andavam pela casa e até chegaram a roer a cara das bonecas de Viola. A acrescentar a todo este cenário insalubre, o seu pai era alcoólico e quando chegava a casa, bêbedo, era violento com as filhas e sobretudo com a mulher. Toda aquela violência aterrorizava Viola e as irmãs ao ponto de fazerem chichi na cama. Viola lembra-se de chegarem à escola a tresandar a urina, mas a falta de água quente em casa, de dinheiro para lavar a roupa ou sequer sabão, não lhes dava alternativa. Os professores humilhavam-nas mas nunca questionaram por que aquilo acontecia. “Não tínhamos praticamente roupa nenhuma, lavávamos a roupa no dia anterior só com água e deixávamos a secar dentro de casa porque na rua ficava congelada.” Logo nas primeiras páginas do livro, a atriz conta como a violência fazia parte do seu dia a dia e não era só em casa, na escola também. Quando andava no terceiro ano, mal tocava a campainha desatava a correr para casa porque sabia que atrás de si viria um grupo de 7-8 rapazes aos insultos, a chamá-la de “preta e feia” e a atirar-lhe pedras. Ela não mostrava medo, trazia consigo uma agulha de croché para os dissuadir e se defender. Viola cresceu num ambiente que a levou a pensar que ela, a sua voz e aquilo que pensava não tinham valor. “Nunca deixei de correr, os meus pés é que pararam”, conta a atriz a Oprah.
Sonhar é preciso
Tinha 14 anos quando viu pela primeira vez na televisão uma atriz como ela, com um tom de pele escuro, lábios grossos e um corte afro curto, era Cicely Tyson. “O meu coração quase parou porque vi ali uma forma de sair daquela miséria.” Foi também com essa idade que teve a coragem de se insurgir contra o seu pai, quando este, em mais um dos seus episódios violentos alcoolizados, estava a bater na mãe e a ameaçou com um copo partido. Num grito de revolta, pediu-lhe que lhe desse o copo. Para sua surpresa, o pai acalmou e deu-lhe o caco de vidro. Foi também com esta idade, no liceu, que Viola começou a participar em peças de teatro através de programas de ajuda a alunos desfavorecidos. Encontrou o seu propósito e todos os professores reconheciam o seu enorme talento e incentivavam-na a seguir uma carreira na área. Para Viola esse era o sonho, mas sabia que também tinha de pagar as contas e que o índice de desemprego dos atores é de 90%. Decidiu que iria ser professora, o facto de ser uma excelente aluna ajudou-a a conseguir apoios, mas não estava feliz e era tão óbvio que a sua irmã Deloris chamou-a à razão, tinha de ir para o Teatro, era a sua essência e o que a fazia feliz. Hesitante, resolveu dar uma chance aos seus sonhos e concluiu o curso superior de Teatro em 1988. Mas achou que tinha de saber mais. Como tinha pouco dinheiro para pagar pré-inscrições, só se candidatou a uma escola: a prestigiada Julliard. Fez apenas uma audição – não podia faltar ao trabalho – mas conseguiu entrar. Só que Julliard foi uma desilusão, deu-lhe as técnicas mas não conseguiu encontrar a sua voz, trabalhar sobre a sua identidade. Escreve Viola que Julliard era demasiado eurocêntrica, branca, passava os dias em vestidos do séc. XVIII e perucas cheias de pó de talco e a ouvir colegas dizer como devia ser divertido viver nesses tempos… Viola gritava por dentro. “O que Julliard fazia era modelar os estudantes de teatro no ator branco perfeito, o facto de eu ser negra foi ignorado, não foi valorizado. No verão anterior ao último ano letivo candidatou-se a um estágio na Gâmbia e ganhou. Aqueles meses mudaram a sua vida, apaixonou-se assim que aterrou, pelas pessoas, pelos cheiros, pela luz, pela arte e cultura locais, veio de lá uma pessoa diferente. Concluiu o curso em Julliard e começou a procurar emprego, até porque tinha de pagar as suas contas, além dos 56 mil dólares do empréstimo estudantil. Mas as oportunidades tardavam em chegar, os papéis que tinham para ela eram invariavelmente de marginais, toxicodependentes, e quando tentou outras áreas os comentários dos diretores de casting eram brutais, mesmo os que não eram brancos, “és escura demais para o papel X”, “não tens a beleza clássica para o papel Y”. Mas a sua sorte, ainda que aos poucos e devagar, estava a mudar.
“O que Julliard fazia era modelar os estudantes de teatro no ator branco perfeito, o facto de eu ser negra foi ignorado, não foi valorizado”
Consagração: tarda mas não falha
Foi com a peça ‘Seven Guitars’ que ganhou o seu primeiro grande prémio, um Tony. Seguiram-se vários papéis que fizeram com que ganhasse um pouco de estabilidade financeira ao ponto de, finalmente, conseguir pagar um seguro de saúde e tratar de si, dos seus problemas uterinos, da alopecia areata e da anemia brutal, e ainda ajudar a família. O seu talento era indiscutível por isso trabalho não faltava, mas eram pequenos papéis e personagens fugazes em séries ou no cinema. A sua grande oportunidade surgiu já em 2008, em ‘Dúvida’, ao lado de Meryl Streep. Era um papel pequeno, apareceu apenas 10 minutos no ecrã, mas todos ficaram hipnotizados com a sua interpretação como Mrs. Miller, a mãe de uma criança que é molestada por um padre. Tanto que ganhou uma nomeação para o Oscar como melhor atriz secundária. Até Meryl Streep ficou impressionada, não se cansando de elogiar a amiga, “deem um filme a esta mulher”, exclamou nos SAG Awards em 2009. Mas este tardava em chegar, e o Teatro continuava muito presente na sua vida. Mais um Tony pela sua interpretação em ‘Fences’, uma pequena passagem pelo filme ‘Knight and Day’, com Tom Cruise, no ‘Comer, orar e amar’, e depois, em 2011, em ‘The Help’, conseguindo mais uma nomeação para um Oscar, a juntar aos outros prémios que ia ‘colecionando’. A oportunidade para interpretar um papel principal surgiu em 2014, com a série ‘How to Get Away With Murder’, de Shonda Rhimes. Viola é convidada para interpretar Annalise Keating, uma mulher negra, complexa e sensual, diferente do que tinha feito até então. Só com esta série ganhou vários Emmy, Golden Globes, Screen Actors Guild… o Oscar só chegou em 2016 com a versão cinematográfica de ‘Fences’. Antes disso, já tinha participado em ‘Prisioners’ (2013); ‘Get on up’ (2014), ‘Lila & Eve’ (2015) e ’Suicide Squad’ (2016). Depois seguiram-se ‘Widows’, ‘Ma Rainey’s Black Bottom’ e ‘Woman King’ e este ano dá vida a Michele Obama na série da Netflix ‘First Lady’. Viola é conhecida por não ter medo de se emocionar, ou como diz Steve McQueen, que a dirigiu em ‘Widows’, “Ela vai onde outros atores não se atrevem a ir, não tem medo de ser humana.”
Os papéis que tinham para ela eram invariavelmente de marginais, toxicodependentes, e quando tentou outras áreas os comentários dos diretores de casting eram brutais: “és escura demais para o papel X”, “não tens a beleza clássica para o papel Y”.
Pedido expresso a Deus
Não temos linhas suficientes para contar toda a história desta atriz ao pormenor, mas um dos episódios mais divertidos que escreve em ‘Finding Me’ tem a ver com a sua vida amorosa, uma desgraça, diz ela, em que os namoros se sucediam, sempre num esforço para encontrar a sua alma gémea. Estava tão desesperada que seguiu os conselhos de uma amiga, que disse para se ajoelhar e pedir a Deus um namorado com todo o pormenor. E ela lá se ajoelhou e pediu: homem negro, forte, do sul, atlético, divorciado e com filhos – não queria sofrer pressão para ter filhos porque tinha problemas de fertilidade – e que conhecesse a forma como o meio artístico funciona. Exatamente três semanas depois Viola conhece Julius Tennon, do Texas, ex-atleta, ator, divorciado e com duas filhas adultas. Foi amor à primeira vista, casaram-se em 2003. Com um ‘padrinho’ tão omnipresente e omnisciente percebe-se por que a intensidade da sua paixão por Julius se mantém bem acesa até hoje. Com ele fundou uma produtora – para fazer os filmes que quer e ajudar jovens atrizes negras a singrar nesta profissão – e adotou uma menina a quem deram o nome de Genesis, já lá vão 13 anos. É, de forma unânime, considerada a melhor atriz negra de todos os tempos mas não baixa os braços, será sempre uma voz ativa de luta pelos direitos dos negros e das mulheres. “Sinto que a minha vida inteira foi um protesto. A minha produtora é um protesto. Eu não ter usado uma peruca nos Oscars em 2012 foi um protesto. É a minha voz, tal como me apresentar e dizer ‘Olá, o meu nome é Viola Davis’.”