Defende o conceito de ‘família multi-espécies’. Os seus animais também são a sua família?
Tenho uma filha humana e três filhos cães. E nunca senti tanto o sentimento da maternidade como com os meus cães. Há qualquer coisa num cão que significa que chegaste a casa. O cheiro dos teus cães, a alegria com que te recebem, as lambidelas que te dão. Os cães estão autorizados a ter connosco uma proximidade que nem a nossa família humana tem. Eu não deixaria nenhum humano lamber-me a cara (risos).
O que é que responde quando lhe dizem que isso não é normal?
Já está mais do que estudado e provado que as ligações que muitas pessoas sentem aos animais que tutelam sãomuito semelhantes às que sentem pelas suas crias humanas. Portanto, isto é científico, não é uma pancada de alguns. E as outras espécies fazem exatamente o mesmo, muitas adotam crias de outras espécies. E quando as pessoas me dizem que isto não é normal, o que é que é normal? Andar a fazer guerra ou a fazer dinheiro a custo de tudo e de todos, se isto é normal eu não quero ser normal. A mim isso nunca me incomodou, o que me tira do sério é quando me dizem ‘isso é muito exremista’. Extremista para mim é usar todos os recuros para fazer mal aos outros, humanos, não humanos ou o planeta. Mas quando se faz o inverso, quando tentamos reduzir o dano que causamos aos demais, não me parece que a palavra extremismo seja muito aplicável. Mas as pessoas usam muito essa palavra quando querem explicar a sua inação. Tento explicar tudo isto na medida em que pode ser explicado, porque há portas que cada um é que tem de abrir sozinho.
Quantos animais tem?
Agora na minha casa só tenho a minha filha, a Banana, o Eddy e o Foskas, porque os outros animais morreram. Durante 10 anos tive a Olívia, uma porca, que foi para o Santuário porque aqui em casa não tinha muita interação com os cães. No meio natural, os cães são predadores e os porcos são presas. Ela enquanto foi pequenina achava muita piada, mas quando cresceu houve um afastamento natural dos cães.
Há coisas que são instintivas…
Sim, a informação genética dela dizia-lhe que eles eram predadores. Nunca aconteceu nada de grave, mas eu via que ela não estava comfortável no meio dos cães. Com o Santuário aprendi que temos de ter muito cuidado quando se junta um predador e uma presa. Temos de observar a selva. É possível um predador conviver com uma presa. Mas tem de haver ali algum equilíbrio. Uma porca contra sete cães, admito que talvez fosse demasiado cão… Agora ela está com galinhas,patos e perus, animais que não são predadores, e adora. E não estranhou ir para o Santuário porque tem um espaço gigantesco e está muito bem instalada.
Custou-lhe deixá-la lá?
Custou-me horrores. Quando lá chegava ia sempre direita a ela e ela dava-me a barriga, como os cães. Das primeiras vezes que a deixei lá, dizia-lhe quando me vinha embora – Anda Olívia, se vieres comigo levo-te de volta para Cascais’.
E ela veio?
Não, nunca veio (risos). Era do estilo, ‘Vai lá à tua vida que eu gosto muito de estar aqui’. Portanto agora só tenho três cães. Já tive sete cães, uma porca e uma gata, quando ninguém os queria acabavam cá em casa… O Foskas veio de uma campanha que fizemos em Belém, ninguém o quis e ele estava tão deprimido que se voltasse ao canil teria morrido. O que eu fazia muito era trazer estes animais, recuperá-los e depois dá-los para adoção. E ele teve todas as doenças que havia para ter. Uma vez fez um pequeno corte em cima de uma veia, e o meu marido levou-o à Clínica a gritar em desespero, por muito que eu disesse que era um mini-corte ele insistiu em ficar com ele, e ainda hoje o meu marido é amado mais do que tudo. O Eddy estava num canil sem condições, acabei por trazê-lo também. A última foi a Banana, foi um caso horrível, viveu anos amarrada a uma carrinha, tinha bebés, depois tiravam-lhe os bebés, levava tareias, até que uma senhora conseguiu resgatar a cadela a troco de dinheiro. Cheou ao hospital desfalecida, doentíssima, parecia morta. Demorou muito tempo a recuperar-se, cheia de medo dos humanos, e só conseguiu ligar-se a mim. Claro que também acabou por ficar.
Ainda tratamos muito mal os animais em Portugal, não é?
Continuamos profundamente ignorantes, agressivos, mal-educados, broncos. E isso reflete-se na violência doméstica e na violência contra os animais. Não evoluímos, a maioria dos portugueses continua abrutalhada. E também porque não temos grande mobilidade social, estamos muito distanciados, cada um está fechado na sua bolha e não evoluiu, a escola também não educa. Não aprendemos uns com os outros. E se depois também não tens nada que te inspire a ser melhor, não há como ficares melhor… Há um padrão de deseducação que se vai eternizando.
Isso reflete-se na forma como tratamos os outros…
Sim, vê-se na forma como falamos das mulheres, se acontece algum tipo de violência era porque ‘ela estava a pedi-las’ e claro que acaba por ser transversal aos animais, são para caçar ou para comer porque ‘sempre foi assim’, e o ‘sempre foi assim’ justifica tudo. Tratamos os animais com uma violência brutal.E eu vejo isso nas pessoas que vão à clínica, às vezes dão cada puxadela nas trelas… E aquilo é quase automático, sempre viram aquilo. Depois há aquelas teorias tipo ‘eu é que sou o líder’, ou ‘eu é que sou o Macho Alfa’, quando está mais do que provado que os animais não têm isso do líder nem do chefe da matilha. Esse tipo de ideia continua a causar muitos estragos.
O que é que ainda falta fazer em termos de bem-estar animal?
A minha tese de doutoramento foi sobre isso: o que é que nos leva a adotar, a abandonar e como é que nos relacionamos com os animais e com a nossa espécie. E a minha maior conclusão foi, nós precisamos mesmo de ser educados em relação a isso. Continuamos muito ignorantes. O ser humano é profundamente estúpido. É urgente educar a sociedade e isto é transversal a todas as áreas. E não está a acontecer. Nós estamos 50 anos atrasados em relação a outros países europeus, por exemplo, como a Espanha e a Holanda, porque o grau de formação cívica deles está muito à frente do nosso. Às vezes dizemos, ‘ah temos muitos problemas com os animais porque não há dinheiro’ mas a verdade é que há, o que acontece é que se perde muito antes de poder ser usado. É uma área tão desprezada que nem sequer sabem usar o dinheiro. Por exemplo, o envolvimento social de muitos veterinários é inexistente. Isso é um grande problema. Nas crianças, por exemplo, os profissiomais exigiram, deram o salto, conseguiram melhorar. Em relação aos animais ainda nos comportamos como os nossos bisavós.
Os animais são sempre os últimos da fila…
Sempre. Lembro-me que quando abri o Hospital Veterinário, uma das críticas que recebi foi que aquilo tinha condições a mais. Imagine-se. Como eram animais abandonados, houve quem achasse que qualquer coisa servia. Lembro-me muitas vezes das palavras do Luís Villas-Boas, que era diretor do Refúgio Aboim Ascenção, onde fiz muito voluntariado, contar que havia uma senhora que foi lá levar um donativo e quis fazer um tour. E perguntava ‘então estas fraldas foram dadas? E estes sumos foram dados?’ e ele respondia que não, que tinham sido comprados. E no fim ela rematou: ‘Vocês têm muito boas condições’ E ele explicou: “As coisas boas não são só para os seus filhos e os meus. Estas crianças também merecem o melhor” e ela saiu toda ofendida. Ele disse-me: “Estás a ver, Sandra, isto é o que tu vais encontrar nos animais” e foi verdade. Mesmo as pessoas que vão na disposição de doar querem encontrar miséria, e quando não encontram, sentem-se desapontadas.
Como é que explica isso?
Ele explicava que se vissem miséria, sentiam-se superiores. Não queriam encontrar ali os mesmos produtos que tinham em casa. E é igual com os animais. As pessoas gostam de ver miséria. Não lhes agrada ver animais ‘demasiado’ bem tratados. E as críticas que eu tenho são sempre assim. Nunca me dizem: ‘olha bem pensado, tens aqui uns animais muito bem tratados’. Não. É demais.
Também criticam as pessoas que dão boas condições aos animais nas suas casas…
Sim, lá está, são extremistas. Então agora deixa o cão subir para cima da cama, diz que é outro filho, põe-lhe uma manta quando está muito frio? Isso é que não. Mas dormir lá fora à chuva amarrado a uma corrente, já pode. Isso é que é vida de cão. Ora todos os seres preferem ser bem tratados a mal tratados. Depois dizem: ‘ai andam a humanizar um animal’. Um animal é um animal, e temos de os respeitar enquanto tal, mas isso não impede que lhes dês o maior conforto que possas, não impede que durmam no sofá ou que vistam uma camisola, qual é o problema? O que está mal é quando os impedes de expressar os seus comportamentos, de ladrar ou de correr. Mas isso não tem nada a ver com conforto e amor.