Aos 40 anos, escreveu ‘Manias’ (Ed. 5livros, E15) um livro espantoso e muitíssimo impressionante sobre como é ser filha de um pai obsessivo compulsivo. Nele, Ana recuou ao passado, quando tinha uma vida familiar muito diferente das raparigas da sua idade.
Como apareceu este livro?
Tudo partiu da memória. A princípio não comecei a escrever um livro, estava precisamente a querer arrumar as minhas memórias. Tinha muita culpa por tudo aquilo que tinha acontecido. Como as memórias vinham sobretudo antes de adormecer, elas eram recorrentes e eu não conseguia dormir. Então decidi sentar-me e escrever tudo num papel.
E como é que foi escrever um livro que parte de uma experiência tão pessoa e tão dolorosa?
Foi exatamente como fazer uma lista de supermercado: sentei-me e tomei nota de coisas de que não me queria esquecer, para depois não pensar mais nisso. Sentei-me para arrumar memórias, acabei com um livro. À medida que ia escrevendo ia-me lembrando de cada vez mais. E houve algumas situações em que era mais nova do que pensava. Há memórias minhas com 4 anos. E quanto mais escrevia, mais me lembrava.
Qual foi a maior surpresa?
A maior surpresa foi lembrar-me tão nitidamente do que sentia. A diferença entre escrever memórias só para mim e para os outros é que tenho de explicar, de situar as pessoas no espaço e no tempo, por exemplo. Ao princípio pensei, vou guardar isto para mim. Depois achei que era bom se as pessoas que me rodeavam ficassem a conhecer-me um bocadinho melhor. Eu nunca escondi que o meu pai era obsessivo compulsivo, mas claro que havia muitos pormenores da nossa vida que eu não partilhava, até porque quando estamos com amigos falamos de outras coisa que não dos nossos pais, e também não gostava de me vitimizar. E quando os meus amigos me começaram a dizer que tinham gostado muito e que valia a pena continuar, comecei a achar que um relato destes podia ser útil a mais pessoas que tivessem passado pelo mesmo.
O que é que mudou em si depois de o escrever?
Percebi porque é que tantos psicólogos aconselham aos seus pacientes que escrevam as suas memórias. À medida que escrevia as coisas foram-se arrumando na minha cabeça e percebi muito melhor coisas que tinham acontecido. Fiquei a perceber-me um bocadinho melhor. Depois de ter um Covid muito mau, o meu pai veio recuperar para minha casa, mas a situação escalou de tal maneira que tive de o pôr fora, para proteger a minha sanidade e a dos meus filhos. Isso culpabilizou-me muito. Percebi que escrevo contra a culpa: screver sobre tudo isto ajudou-me a desculpabilizar.
Para quem não sabe o que é o transtorno obsessivo compulsivo, pode explicar o que era e o que significava ser filha de uma pessoa com esse transtorno?
Como filha de um pai com transtorno obsessivo compulsivo, sempre funcionei como a ‘ajudante’ das manias, a pessoa que verificava tudo com ele milhares de vezes por dia: se a porta estava fechada, a janela trancada, o tapete no sítio, a tampa da pasta de dentes fechada, a torneira seca, a toalha direita, o canelado das meias vertical. Isto não é uma pessoa ‘arrumada’ ou ‘com manias’, é uma pessoa doente. Em criança, todos nós tinhamos de andar em casa muito devagarinho para não ‘fazer vento’ e não mudar nada de sítio, não podíamos pisar os tapetes nem mexer nas cortinas, e à medida que a doença ia alastrando deixámos de poder usar totalmente várias divisões da casa: a cozinha, a casa de banho, a sala. Comíamos fora, tomávamos banho em casa da minha avó. Aliás, ele passava a maior parte do tempo na cama, precisamente para não mudar nada de sítio.
Porque é que a família ‘colaborava’ com ele?
Nós achávamos que o estávamos a ajudar, mas estávamos apenas a alimentar a sua doença. Era um pesadelo e às tantas eu e o meu irmão já nem iamos a casa. E era estranho porque, fora de casa, o meu pai tinha um lado normal, o que nos dava esperança que alguma vez melhorasse. Mas isso nunca aconteceu, pelo contrário, veio progressivamente a piorar.
Como é que uma filha lidou com tudo isto?
É muito difícil lidar com isto, porque o meu pai sempre se viu como uma vítima, e fazer-lhe frente era uma traição, um ataque à sua condição e falta de amor filial. Deixei muitas vezes de me dar com o meu pai, porque tudo girava à volta dele. A culpa era minha porque era ansiosa, dizia ele, tentando sempre convencer-me que o problema era meu, eu é que tinha de me tratar.
Calculo que o seu livro tenha sido um apoio para quem passou pelo mesmo…
Ter más relações com um pai ou uma mãe na nossa sociedade é tabu, e no entanto é muitíssimo frequente. Não imagina a quantidade de mensagens que eu recebi de pessoas com mães e pais tóxicos a dizer ‘isto ajudou-me muito a lidar com a minha culpa’. Não estava nada à espera da reação gigante que tive, tem sido muito gratificante para mim.