Carmen Garcia

Combinámos encontrar-nos na Pousada Convento de Arraiolos, um hotel histórico onde ainda encontramos uma igreja com azulejos tipicamente portugueses e onde somos recebidas com a simpatia tão característica dos alentejanos. Entre a beleza da planície, as lareiras típicas e os arcos medievais, conversámos enquanto as crianças corriam no chão de pedra tantas vezes percorrido pelos monges.

A minha entrevistada trabalhou durante 11 anos como enfermeira num hospital do SNS, e em 2021 deixou a carreira hospitalar, passou a dedicar-se à geriatria e aceitou um lugar numa empresa de tecnologia. Mas ganhou fama no mundo digital porque nunca foi uma influencer como as outras, que mostravam a roupa, a casa ou os filhos, mas uma mulher de causas. Nunca teve medo de dizer o que pensava, fosse sobre as agruras da maternidade, a surdez do filho Pedro ou o estado da nação, e essa abertura ganhou-lhe muitos admiradores que através dela tiveram voz. O blog ‘Mãe imperfeita’ sacudiu o pó a muitas ideias (per)feitas sobre maternidade, e mostrou às suas seguidoras que podiam ser perfeitas, imperfeitas ou o que quisessem. No ano em que celebramos a liberdade, no mês em que celebramos as mães, e na região em que celebramos a paz, Carmen Garcia (que foi, além do mais, uma das nossas nomeadas para o Prémio Activa – Mulheres Inspiradoras deste ano) falou de tudo o que a incomoda e daquilo que lhe dá alento: os filhos Pedro e João.

Nasceste em Évora, no dia mais quente do ano de 86. Quem é que te contou isso?

Estou constantemente a ouvir relatos disso, os carros encostavam às bermas porque nem sequer conseguiam andar. Estamos a falar de quase há 40 anos. No dia em que a minha mãe teve alta da maternidade, conta que vinha no banco de trás do carro comigo ao colo angustiada a pensar ‘uma menina tão pequenina, acabadinha de nascer, se o carro pára e ficamos aqui encalhados…” Mas isso não aconteceu. Nasci de cesariana programada porque a minha mãe é diabética e as minhas duas irmãs tinham nascido as duas com mais de 5 quilos. E nasceram em casa de parto normal. As mulheres dantes sofriam muito.

Admira como ainda te quis ter a ti…

Não quis nada! Eu tenho menos 17 anos que a minha irmã mais velha, e quando a minha mae ficou grávida de mim não só ninguém ficou muito contente como foi mesmo um choque. A minha irmã mais velha chorava e achava uma vergonha andar na rua com uma mãe grávida, passava o tempo a dizer-lhe ‘Ó mãe, tu és demasiado velha para ter filhos!’ e a minha mãe só tinha 36 anos… Eu sempre senti que tinha pais velhos, na primária os meus colegas tinham mães com 20 e poucos e a minha tinha 40 e tal. Era uma diferença brutal.

Como era a relação com as tuas irmãs?

A minha irmã mais velha sempre foi a minha segunda mãe. Eu tinha duas mães, na verdade. Aliás, quando ela casou e foi de lua de mel, voltou mais cedo porque estava cheia de saudades minhas.

Como foi a tua infância?

Muito sossegada. Vivia em Vendas Novas, onde ainda dava para brincar na rua e fazer papas de lama no quintal. Mas teve uma coisa preciosa. Eu sou a filha mais nova de dois filhos mais novos, o que quer dizer que quando eu nasci os meus avós já eram bastante velhotes e começaram a ficar doentes. Quando eu tinha 6 anos eles vieram viver connosco. Portanto eu sempre convivi com pessoas mais velhas.

O que aprendeste com eles?

Acima de tudo, aprendi a respeitá-los. Nunca os vi como um peso. Lembro-me de uma vez o meu avô me pedir beijinhos e eu fazia aquilo que todos os miúdos fazem, limpar a cara. Eu hoje dava anos de vida para os ter comigo outra vez e poder voltar a enchê-los de beijinhos. Além dos meus avós, havia outras pessoas mais velhas. Quem me ensinou a fazer renda e ponto cruz foi a minha vizinha Jerónima, que se quis despedir de mim antes de morrer, já com mais de 90 anos. Essa senhora tinha um filho que estava emigrado, mostrava-me os álbuns de fotografias das netas, que só via uma vez por ano e eu dava-lhe muitos abraços. Acho que aprendi também o que era a solidão. Mas acima de tudo aprendi que os mais velhos não são um peso. Nesta sociedade atual e frenética, onde todos temos de ser produtivos, sentimos que os mais velhos não servem para nada.

E além disso muitos deles estão fora do mundo digital…

Os mais velhos sim, mas isso está a mudar. As pessoas que vão agora chegar aos lares já não são assim. Agora, temos uma geração com baixa literacia. Um estudo muito recente, de 2023, mostrou que 37% das pessoas que estão agora em lares são analfabetas. Isto é muito chocante. São pessoas que viveram antes do 25 de Abril, que trabalhavam de sol a sol e dividiam uma sardinha, isto quando havia sardinhas, e comiam caldos de couve para enganar a fome. São uma geração muito grata por tudo, onde o pouco que lhe damos é um luxo. A geração a seguir já não. Já viveu muito melhor, já é mais exigente, já não aceita qualquer coisa. E se a sociedade não se organizar para perceber que o perfil do idoso mudou, vai ser muito grave.

O que achas que devia ser feito?

Até agora, apostou-se tudo em unidades de cuidados continuados onde há muito pouca reabilitação, e olhámos sempre para os lares como a primeira resposta. Quase um quarto da população tem mais de 65 anos,e vamos pagar tudo isto muito caro. Temos de lutar para permitir que as pessoas estejam nas suas casas o máximo de tempo possível. Por exemplo, além de se levar comida, limpar a casa e tratar da higiene pessoal, tem de ir um psicólogo a casa das pessoas uma vez por semana para fazer estimulação cognitiva, porque quem tiver uma demência não pode ficar sozinho. Há muita coisa a fazer para diminuir e atrasar as demências, por exemplo, e as equipas não podem ser duas auxiliares que têm de despachar 30 pessoas numa manhã e mal têm tempo de olhar para elas. Mas o caminho tem de ser este. O problema é que a gente gosta é de os internar e esconder e despachar. Por exemplo, os Centros de Noite seriam uma ótima solução. De tarde vem uma carrinha buscar as pessoas elas dormem num centro, de manhã voltam para as suas casas e passam o dia no seu ambiente, com os seus amigos e a sua família. Isto funciona muito bem mas em Portugal os centros de noite não pegam e não se percebe porquê.

Porque é que te interessaste pelos mais velhos?

Eu adoro crianças mas nunca teria sido enfermeira pediatra, porque o stresse dos pais me derruba.

E tu, és uma mãe stressada?

Não, ou pelo menos não com doenças. Uma vez escrevi um texto no Facebook em que dizia que o Pedro estava com febre há 5 dias. Recebi um telefonema indignado da pediatra: ‘De que que é que estava à espera para me ligar?’ (risos) Claro que eu sou enfermeira e sei como estas coisas funcionam, mas também podia dar para o outro lado. Tenho colegas minhas enfermeiras que quando os filhos ficam doentes começam logo a pôr mil hipóteses absurdas que não passariam pela cabeça de ninguém. Eu adoro crianças mas sou mesmo boa é com os mais velhos, e com as populações mais frágeis. Por exemplo, gostei muito de trabalhar com meninas ciganas.

Como é que isso aconteceu?

Fiz voluntariado num bairro há uns anos, e aprendi imenso. Mas eu não sou politicamente correta. Por exemplo, por muito que me digam que há coisas que são culturais e fazem parte da tradição, eu não consigo aceitá-las. Não consigo aceitar crianças de 13 anos grávidas, por exemplo, como vi numa escola do baixo Alentejo há pouco tempo. As culturas morrem onde começam os direitos humanos, e todos os estudos mostram que as meninas continuam a ter uma escolaridade muito inferior à dos rapazes. Tive uma rapariga de 28 anos cigana que não sabia ver as horas! Outra com 14 anos e um défice cognitivo enorme, grávida, a urinar-se constantemente, que só dizia 3 palavras: frango, bebé e sogra. Aquilo tinha sido um casamento arranjado à nascença, o rapaz nem queria casar com ela foi obrigado, uma tristeza. E quando me dizem, ‘Temos de respeitar isto’, eu digo ‘Não temos nada’. É preciso uma revolução que parta de dentro da comunidade cigana e que proteja as meninas e os rapazes deste tipo de atrocidade. Portugal é dos países da União Europeia onde se engravida mais cedo. Estão fartos de nos fazer recomendações para passar a idade legal do casamento para os 18 anos, mas mantém-se nos 16.

Mas muitos pais também não querem educação sexual…

Mas há uma parte da educação sexual que pode perfeitamente ser dada em biologia, e não está a ser dada. Por exemplo, fui a uma escola secundária e uma parte considerável das raparigas achava que urinavam pelo mesmo sítio por onde menstruavam! Há um desconhecimento brutal de anatomia, e é por aí que a educação sexual tem de começar, porque as raparigas têm de conhecer o próprio corpo. Isto está-nos a correr tão bem que somos um dos países onde a sífilis e a gonorreia mais têm aumentado. Ou seja, os jovens usam muito menos o preservativo que a geração anterior. Nós fomos uma geração muito marcada pela Sida, que era uma coisa monstruosa. Agora a Sida tornou-se uma doença crónica e as doenças sexualmente transmissíveis não os assustam. Alguma coisa está a falhar.

Como mãe, o que é que te preocupa mais em relação aos teus filhos?

O meu filho mais velho, o Pedro, já está no primeiro ano e é surdo implantado. É surdo profundo mas tem um implante coclear dos dois lados, o que lhe permite ouvir e falar normalmente. Cada distrito de Portugal tem uma escola de referência para a educação bilingue de alunos surdos. Ora o Pedro não precisa de uma escola especial, ele integra-se normalmente numa escola comum. Mas não pode estar numa turma enorme, com muito barulho. E, ou eu fazia 120 quilómetros de táxi para uma escola em Évora, ou seria impossível mantê-lo na escola do agrupamento. Fiquei sem opções. Então optei por deixá-lo onde ele estava, num colégio privado, a ele e ao João. Problema: custa muito dinheiro. E eu ando sempre a contar tostões. Todos os dias vou à minha conta ver quanto dinheiro tenho. Foi uma decisão muito difícil e honestamente preocupa-me imenso o estado da educação em Portugal. Na escola pública a falta de professores é brutal, há uma desmotivação brutal na classe, falta de disciplina e de respeito, e isso assusta-me muito. Muitas pessoas não educam minimamente os filhos. Assistimos a notícias onde os miúdos troçam dos professores, batem-lhes, insultam-nos. Não é isto que eu quero para os meus filhos.

Deixaste de ser enfermeira?

Agora trabalho na DECSIS, uma empresa de tecnologia que está a utilizar a Inteligência Artificial na área do envelhecimento. Estou a coordenar a parte não tecnológica dos programas a desenvolver. Por exemplo, era importante criar um mecanismopara ajudar as pessoas a saber as horas de tomar os comprimidos. Mas não deixei totalmente a enfermagem. Gosto muito do tratamento de feridas e continuo a fazê-lo em domicílio. E não é pelo que ganho. Sempre defendi a saúde e a escola públicas, mas neste momento nenhum deles me dá as garantias de que eu preciso.

O Pedro foi tratado no público ou no privado?

O Pedro fez um implante no privado, e esteve 9 meses à espera do segundo implante no público. E na escola pública eu não tive nenhum tipo de resposta para o meu filho surdo. Portanto isso assusta-me muito neste momento.

As mães já têm uma vida tão difícil em Portugal…

Não sei como é que querem que as pessoas tenham filhos quando as aulas acabam às 3 da tarde, por exemplo… Qual é a mãe que está em casa às 3 da tarde? Eu também saía a essa hora, mas pegava nas pernas e ia para casa e estava lá sempre alguém. Hoje se os meus filhos forem para casa a essa hora, encontram uma casa vazia.

Quanto tempo estiveste num hospital público?

11 anos nos cuidados intensivos. Mas ser enfermeira nessas condições mata devagarinho. O trabalho por turnos é terrível para quem é mãe. Despedes-te dos miúdos de manhã e quando voltas eles já estão a dormir. E depois é-se incrivelmente mal pago. Eu decidi ir-me embora quando, ao fim de 11 anos numa unidade de cuidados intensivos, o meu ordenado foi 962 euros. Se eu tivesse continuado a ganhar isto, não podia manter o Pedro no colégio. Portanto, deixei o SNS com pena. Mas nunca me arrependi. Agora, estou muito feliz a fazer aquilo que faço. No hospital sentia que estava realizada com o meu trabalho, mas que não dava para viver decentemente. Ninguém consegue viver assim.

E para um casamento também calculo que não seja fácil…

Durante a pandemia foi horrível. Nós mal nos víamos, noites e noites a fio fora de casa, comunicávamos por post-its, acabámos por nos separar. Portanto se me perguntares se aconselho alguém hoje em dia a ir para enfermagem, claro que não. Mas temos de segurar cá os miúdos. Choca-me imenso que se esteja a empurrar os jovens para os estrangeiros, para a emigração, em vez de se tentar fazer tudo para os reter. Há uma apatia muito grande em relação a tudo, é como se toda a gente tivesse perdido a esperança. Eu mesma sou mãe, adoro, e gostava de ser daquelas pessoas que trazem sempre uma mensagem otimista. Mas neste momento não consigo ser assim.

Como é que orientas os teus filhos num mundo tão complicado?

Acima de tudo, tento educá-los para serem boas pessoas. De resto, não há muito mais que eu possa fazer. Tento mostrar-lhes o que está certo e o que está errado, sem margem para dúvidas. Sei que há situações em que as coisas não são só pretas ou brancas, mas na idade deles ainda são. Gostava acima de tudo que fossem bondosos. Claro que dou importância a outras coisas. Por exemplo, gostava que fossem bons leitores. O Pedro já lê a coleção dos ‘Mini Sete’, a dos Monstros, e quero que eles sejam os melhores que conseguem. Mas sinceramente, neste momento temo que vá ser como as minhas avós e veja os meus filhos partirem para a guerra.

Como é que a guerra marcou a tua família?

As minhas avós tiveram as duas filhos na guerra. O meu pai esteve 30 meses em Moçambique. Mandámos para lá meninos que voltaram homens absolutamente destroçados. O meu pai passou três natais em Moçambique e não se lembra de nenhum. Eu felizmente já sou filha da madrugada.

O que é o 25 de Abril para ti?

É isso mesmo. É a madrugada. Eu tento explicar isto aos meus filhos de forma a que eles, com a idade que têm, entendam: não concebo uma vida que não seja vivida em liberdade. Não faz sentido viver senão for para sermos livres. E eu não estaria aqui a falar contigo agora se não fosse o 25 de Abrl, porque os meus avós eram pessoas muito muito pobres a quem o 25 de Abril abriu portas. Eu e os meus primos somos licenciados e temos vidas bastante melhores do que eles tiveram porque o 25 de Abril foi um elevador social. Odeio a apropriação do 25 de Abril, acho que o 25 de Abril devia ser de todos os portugueses, é o dia da liberdade de todo um povo, é o dia em que deixámos de viver agrilhoados e nos libertámos. E isso devia ser celebrado por todos, independentemente de se ser de esquerda ou de direita.

És muito contra saudosismos, não és?

Sim, aqueles que dizem que antes do 25 de Abril é que eramos um grande país… A minha mãe ia para a escola descalça porque os únicos sapatos que tinha era só para usar ao domingo… Isso é falta de memória. E sabes porque é que há pouca memória? Porque ouvimos pouco os velhos.

Lá está, voltamos ao princípio…

Eu ouvia muito o meu avô, ele falava muito disso. Lembro-me dele contar que ouvia as rádios proibidas debaixo da almofada e que a minha avó rezava muito para não o apanharem. Ele dizia muito, ‘tu não tens fome, tens é vontade de comer. Fome é outra coisa’. Contava muito que quando o meu tio João teve tuberculose e foi internado no sanatório das Penhas da Saúde, e os meus avós não conseguiam ir vê-lo… Quando ele foi transferido para o Lumiar, a minha avó foi a Lisboa pela primeira vez. Não sabia ler nem escrever e andava numa carroça. Andou meses a juntar pão, queijo, azeitonas, e enchidos no Alentejo em duas cestinhas para o filho. À entrada no metro desequilibrou-se nas escadas rolantes. E quando ela me contava isto, acabava sempre com ‘mas a avó nunca largou as cestas’. Isto era uma miséria autêntica. E por isso me irrita os discursos daqueles reacionários que não sabem o que isso era.

Isso também deixou marcas na tua vida?

Claro que deixou. Por exemplo, para mim é impensável não ir votar. O meu avô vestia fato para ir votar. As pessoas que dizem que votar é um dever, mas votar é acima de tudo um direito. Há velhotes nos lares que vão todos escavacados votar. Eles nem conseguem andar, mas levantam-se e vão votar. E há miúdos que não vão porque estão na praia! E é inacreditável ver uma geração que retira toda a sua informação do Facebook.

Assusta-te o perigo das Fakenews?

Muito. Principalmente em ciência. Vejo nas redes sociais coisas do Arco da Velha. Vem um que diz que comer brocolos faz mal, outro que diz que se deve fazer clisteres com água do mar, e as pessoas vão atrás de gurus sem a mínima formação científica e papam as teorias da conspiração mais inacreditáveis…

Porque é que achas que isso acontece?

Gostava de acreditar que não é pela estupidificação total de um povo (risos). O que acontece, lá está, é a falta de memória. Nós já estamos todos tão bem que nos esquecemos de como eram as coisas dantes. Aqui temos pais anti-vacinas. Em África, há mães que fazem quilómetros com os filhos às costas para os vacinar. Havia um senhor lá no lar com um irmão que teve poliomielite, e estava sempre a dizer: ‘Ainda bem que agora já não há aleijadinhos’. A poliomielite, a tuberculose, o sarampo, a tosse convulsa, isso matava muita gente. Encontra-me uma mãe em África que ponha em casa as vacinas… Nós é que já estamos numa posição tão confortável que nos leva a pôr em causa aquilo que nos salvou. É muito estranho. E há modas que me tiram do sério.

Como por exemplo?

Por exemplo, a dieta paleo. Quando me vêm dizer, ‘ai deviamos todos comer como no Paleolítico, porque aí é que se comia bem’. Mas como, se a esperança de vida no Paleolítico era de 28 anos? Como é que alguém tem coragem de me dizer isso em 2024? Agora chegamos aos 80 e tal mas vamos viver como os desgraçados que viviam 28? Mais perto de nós há marcos científicos que transformaram e melhoraram para sempre a vida da Humanidade, como a descoberta dos antibióticos ou da insulina, mas tudo isso são descobertas científicas! Porquê este medo? As mães passaram da mania de dar antibióticos por tudo para a de não dar antibióticos por nada. E hoje temos miúdos internados nos hospitais com sepsis que teriam sido perfeitamente evitadas. E se queres falar de maternidade, vamos falar da moda dos partos em casa.

És contra?

Obviamente que sou contra! Uma das coisas em que nós somos os melhors do mundo é uma baixíssima taxa de morte perinatal. E numa das coisas em que eramos mesmo bions, decidimos andar para trás. Porque era mais natural, porque era mais biológico, sei lá. Ora não é por isso que temos de lutar. E eu posso falar porque fui vítima de violência obstétrica séria. Aliás, o Pedro é surdo devido a violência obstétrica, tive costelas fracturadas durante o parto e o meu filho viverá sempre com as consequências disso. E eu sou a primeira a dizer que isto não se resolve parindo em casa. Isto resolve-se humanizando os cuidados prestados nos hospitais. Mas parir em casa? Quer dizer, assume as dores por ti, que és a mãe, mas e se acontece alguma coisa ao bebé? Enfermeiras e parteiras, não fazem entubação, por exemplo. Se o bebé nascer parado, não há maneira de o reanimar em casa. E às vezes são coisas de segundos. Como é que vais viver o resto da tua vida sabendo que o teu filho morreu porque o quiseste ter em casa? Claro que estes casos são baixíssimos porque também felizmente que os partos em casa ainda são muito poucos. Mas a moda está aí. Tal como nas vacinas, atingimos níveis tão bons que nos damos ao luxo de poder começar a regredir.

Como já reparou até quem não te conhecia, és uma mulher de causas. O que é que ainda te dá alento para continuar a lutar?

Os meus filhos. E achar, de uma forma completamente estúpida, que ainda posso fazer alguma diferença. Olha todos os dias para o Pedro e para o João e pensar, ‘a mãe ainda pode fazer alguma coisa para melhorar o mundo em que vocês vivem’. Se isto é realista? Não é. Mas é o que me dá ânimo. Temos de seguir em frente, cada um de nós com as armas que tem. Porque eu tenho muito medo do mundo que estou a deixar aos meus filhos.

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