Foto João Lemos

Conversamos antes das fotografias na lindíssima Duna da Cresmina, onde vai muitas vezes retemperar a alma. “Os portugueses não aproveitam aquilo que têm”, afirma logo. “Este sol, este mar.”

Os anos podem ter chegado ao corpo, mas não chegaram à cabeça, o que ela atribui à disciplina do ballet. Duas horas de conversa não são suficientes para uma vida que, como se diz muitas vezes, dava um filme. Com ela viajamos à época áurea do ballet, a Paris e Moscovo, aos tempos em que Nureyev ainda não tinha dado o salto e em que as sapatilhas de pontas ainda não eram almofadadas. Apresento-vos uma estrela do ballet francês.

Como ex-bailarina (enfim, bailarina de tempos livres, entenda-se) quero saber o que faz uma estrela vir apagar-se neste canto da galáxia. Ela reage, que não se apagou coisa nenhuma, que veio ensinar, como sempre quis fazer. Espalhar a luz, portanto, penso eu. Penso mas não digo, porque tenho à minha frente uma alma antilamechice. Tiro a camisola. Está quente. Ela fica sólida no seu poiso. Vamos lá então entrar na Máquina do Tempo.

Dentro de um filme

Michele nasceu em Paris, no bairro que era então poiso de pintores e boémios. Montmartre foi o sítio que lhe deu alma de artista, ou talvez lhe tenha vindo mesmo da família: uma bisavó do lado da mãe era atriz na Comédie Française e o pai era ‘bottier’, que não corresponde à tradução portuguesa de sapateiro, mas era um artesão especializado em fazer sapatos por medida, um artista do calçado. Aliás, foi condecorado várias vezes pela sua arte. “Fazia sapatos para muitas pessoas conhecidas, como a Gina Lollobrigida”, recorda a filha.

Em Montmartre, Michele fez sempre parte do Desfile da Vindima, um acontecimento anual que celebra a altura em que o pintor Francisque Poulbot salvou esse espaço de ser cimentado. Ela era a mascote, a mais pequenina.

Ora com local de nascimento em Paris no ano de 1937, claro que a Segunda Guerra apanhou Michele na primeira infância e em cheio no período formativo. Era uma criança pequena, mas as recordações são nítidas. “O meu pai estava no exército e foi feito prisioneiro logo ao princípio. Nós tínhamos senhas de racionamento, lembro-me de a minha mãe ir ao campo à procura de mais alguma coisa para comer. Eram tempos muito complicados. E a minha mãe guardava sempre um bocadinho de chocolate para mandar ao meu pai. Lembro-me de ir às escondidas e tirar só um bocadinho.”

Até hoje não consegue ver filmes sobre a Segunda Guerra. “Há coisas que não gosto de recordar, naturalmente. Mas lembro-me de tudo, dos racionamentos, dos bombardeamentos, de tudo. Hoje, em Portugal, não imaginamos o que é viver assim, não imaginamos como a guerra pode chegar até às pequenas coisas do dia a dia. Todas as noites deixávamos a nossa roupa preparada aos pés da cama para nos vestirmos rapidamente quando a sirene tocasse.”

E tocava muitas vezes. Então a família escondia-se nos corredores do metro, para se manter a salvo das bombas que caíam sobre Paris. “A minha avó levava todas as nossas coisas e passávamos lá a noite. Lembro-me de nos escondermos nos esgotos e da água a subir, lembro-me de irmos procurar o meu tio quando havia prisioneiros que regressavam. E na escola, volta e meia apareciam alemães para verem quem era judeu e não judeu, para levarem os alunos judeus. Lembro-me disso tudo. Claro que uma criança habitua-se a tudo, aquilo era a minha rotina. Mas deixa marcas para o resto da vida. Eu agora dou aulas nos Bombeiros de Alcabideche, onde a sirene toca sempre ao meio-dia. Isto para mim, ao princípio, era desesperante.”

Lembram-se do pai que ficou prisioneiro dos alemães? Este pai daria uma história digna de um filme daqueles que Michele não consegue ver. “A certa altura, vieram dizer à minha mãe que tinham encontrado a gamela com o número dele, que devia estar morto. O que aconteceu foi que ele conseguiu evadir-se do campo onde era prisioneiro. Um dia, eu estava no jardim e vi um senhor magro e de barba a chamar-me. Claro que não o reconheci. A minha mãe quando o viu desmaiou, e para o resto da vida ficou com muitos problemas cardíacos, volta e meia apagava. Mas eu reagi bem, talvez porque, como ela sempre tinha continuado a falar-me do meu pai, para mim ele estava vivo.”

Regressado a casa, o pai não ficou sossegado e começou imediatamente a trabalhar para a Resistência. Mas quando um membro da família era ‘resistente’, isso implicava a colaboração do resto da família: mesmo das crianças que nem percebiam ao certo o que se passava. “Eu, pequena como era, sabia disto porque obviamente me preveniram para nunca falar a ninguém do que acontecia em casa”, recorda Michele. “Lembro-me que o meu pai usava umas calças tufadas de golfe, onde calculo que transportasse documentos ilegais para ajudar quem precisava.”

Não contente com isto, escondeu em casa um amigo judeu e a família, a mulher e um bebé. “O primeiro brinquedo que o meu pai mandou fazer para mim foi um carrinho de bonecas, e esse carrinho foi usado para o bebé. O meu pai dizia-me muitas vezes que não podia dizer a ninguém o que estava no meu carrinho. Lembro-me muito bem de ter em casa uma família amiga, mas de não abrir a boca para nada, nada. Essa sensação de não poder falar era terrível, e acho que é por isso que até hoje não suporto a mentira e a falsidade.” Apesar de tudo, continua a achar que teve sorte. “O meu pai foi uma grande referência para mim. E foi um milagre os alemães nunca se terem lembrado de ir lá a casa.”

De Montmartre a Moscovo

Quando a guerra acabou, reabituaram-se a viver de outra maneira e a vida voltou ao normal. Mas o normal para Michele significava uma rotina aborrecida. “Eu era maria-rapaz e não gostava da escola, aquilo não me dizia nada. Era uma criança criativa, que inventava muitas coisas. Lembro-me de fazer danças em cima da grelha do metro, que nos levantava os vestidos.”

O responsável pela sua entrada no mundo da dança foi o médico da família. “O médico ia muito lá a casa por causa das crises de desmaios da minha mãe, e via-me fazer as minhas danças. Até que um dia disse à minha mãe: ‘Acho que devia pôr a sua filha numa escola de dança’. E a minha mãe respondeu: ‘Só vai para o ballet se tiver boas notas e ficar todos os meses nos 10 primeiros da turma’.”

Começou a ter aulas aos 9 anos numa pequena escola e percebeu imediatamente, pequena como era, que aquilo era o que mais gostava de fazer na vida. Mais uma vez, afirma, teve sorte. “A minha primeira professora de ballet, Aubagna Bertauld, foi a pessoa chave no princípio da minha vida, porque o marido pertencia à Comédie Française. E quando abriu concurso para entrar no Conservatório, ela sugeriu à minha mãe que me levasse.”

A mãe recusou. Andar numa escola tudo bem, entrar para o Conservatório não. “É preciso ver que nessa altura, nos anos 40, não se falava nada de ballet, não era comum as meninas terem aulas de dança”, lembra Michele.

Pormenor: às vezes, há pessoas na nossa vida que acreditam mais em nós que a família. Lembram-se do médico? Pois pegou em Michele e levou-a a fazer o exame sem dizer nada à mãe.

Como podem calcular, foi aprovada. “Eu era uma figura”, ri-se hoje. “Tinha aparelho nos dentes e a minha mãe todas as noites me enrolava o cabelo com bigoudis para fazer canudinhos. Portanto eu não podia enrolá-lo atrás num carrapito como todas as outras bailarinas, e lá apareci no exame de aparelho e caracóis.” Não só autorizaram como a admitiram. A mãe acabou por dar permissão e ela entrou para o Conservatório.

Até à exaustão

De manhã, frequentava uma escola particular, onde não podia chumbar a nada. De tarde, tinha 6 horas de ballet no Conservatório. “Lembro-me muito bem do meu primeiro bailado com público, quando ainda era aluna, tinha uns 16 anos (de vez em quando as alunas dos últimos anos eram chamadas para dançar qualquer coisa). A primeira vez foi com o coreógrafo Serge Lifar, a segunda parte de Giselle. Claro que não era ele que nos ensaiava, havia uma pessoa para isso, mas ele era uma pessoa fantástica para se trabalhar, tinha alma, era um artista. Convivi muito com ele, e a partir daí tentei trabalhar sempre com pessoas mais velhas, aprendia-se muito.”

A técnica de uma bailarina clássica era obviamente trabalhada até à exaustão. Mas o espírito inquieto de Michele levava-a a querer aprender outras coisas, outros estilos, outras formas de dançar, para não ficar trancada no espartilho do ballet clássico. “Eu, técnica tinha. Mas não deixavam exprimir-me através da música. Então comecei a trabalhar com uma professora velhinha mas muito exigente, que tinha fugido da Rússia, e acabei por ser escolhida para representar a França no primeiro concurso internacional em Moscovo, em 1957. Era uma grande honra e uma coisa muito importante.”

Lá partiu para Moscovo, com o professor que a preparara, Edmond Liuval, e trouxe para casa a medalha de prata, uma grande vitória. Mas trouxe mais: a descoberta de outro mundo e outra forma de ver a dança.

Ulanova, Nureyev e os outros

A história do ballet está intimamente ligada à história da cultura russa, e tornou-se uma espécie de símbolo do país e da sua ligação às artes. Alguns dos bailados mais famosos, como O Quebra-Nozes, O Lago dos Cisnes ou Romeu e Julieta, são russos, e principalmente nos anos 50 algumas das principais estrelas de ballet eram russas. Fundado em 1825, o Bolshoi abrigava a maior companhia de ballet do mundo e os seus bailarinos eram altamente valorizados e vistos mesmo como representantes da alma russa.

Foi esta alma artística global que Michele encontrou no outro lado do mundo. “Voltei lá muitas vezes e aprendi muito com os russos, que tinham uma tradição diferente da francesa, mais artística, mais intensa. Conheci os ‘grandes’ do ballet russo: a Ulanova, o Nureyev, que era mais ou menos da minha idade. E encontrei uma grande parte de mim lá. Mas teria sido complicado lá ficar. Não tinha o passaporte comigo e levava intérprete, chofer, tudo.”

Não chegou a dançar com o Nureyev, mas a privar com ele sim. “Passa-se muito uma ideia do Nureyev como uma pessoa difícil, mas era acima de tudo uma pessoa exigente, e com razão. Eu agora vou ver o Cinderela dele e está tudo no sítio, tudo segue a música, é tudo perfeito. Como seria possível dançar assim sem se ser exigente?”

Havia muitas diferenças entre ser bailarina na França e na Rússia. “Em França, tinha trabalhado coisas como pas-de-deux, obviamente, mas os bailarinos franceses não tinham o ‘porter’ dos russos, que eram muito fortes, muito acrobáticos! Foi das coisas que mais me espantou, não estava preparada para isso.”

Em França, tinha trabalhado com o professor Guichot, que ensinava um trabalho muito acrobático. Mas mesmo assim não era como na Rússia. “Lembro-me de dançar com o partenaire da Ulanova, o Youri Jdanov, e aquilo era fabuloso! Foi assim que consegui exprimir a música como eu queria, e não ter apenas a parte técnica. Claro que isto foi nos anos 50, desde essa altura o ballet em França evoluiu muito.”

O mundo do bailado russo era mágico aos olhos dos estrangeiros apaixonados por dança, mas não era fácil viver por trás da cortina de ferro. Nureyev não foi o único a fugir para o mundo ocidental. “Nos anos 50 e 60 os bailarinos russos começaram a vir a França, mas muitos deles tentavam fugir e ficar no ocidente, era muito complicado. Tínhamos coisas em França que não havia na Rússia, e quando eu lá ia levava imensas coisas que já sabia que ia lá deixar. Collants de licra, por exemplo.”

Portugal entra em cena

Fui bailarina mas continuo com um fetiche mórbido por sapatilhas de pontas. Para mim, aquilo é um instrumento de tortura. Mas ao que parece estou desfasada, porque Michele afirma que já não é nada assim. “As sapatilhas de pontas agora são um luxo, têm proteção de silicone, e as miúdas não sentem nada! As minhas primeiras sapatilhas de pontas, eu usava-as quase a seco, sem collants nem nada, pés descalços só com um bocado de papel higiénico lá dentro. Se era doloroso? Nem pensávamos nisso. Quem gostava mesmo daquilo, como eu, nem ligava. As professoras diziam-nos para pormos os pés em álcool, que enrijava. Aliás, até acho que hoje faz mais falta sentir o chão, o palco. Hoje já está tudo muito almofadado e o ballet não pode ser uma coisa almofadada.”

Afirma que vivia para a dança, mas a mãe insistiu para que tivesse um plano B, por isso tirou o diploma de professora na École Supérieure de Chorégraphie. Entretanto dançou muito, com vários grupos, em vários estilos e companhias, até que, com 35 anos, decidiu parar e cortar com tudo. “Tenho um feitio muito decidido, e a partir de um certo momento achei que tinha de mudar de vida radicalmente.”

Mudar radicalmente incluiu a vida pessoal: casar-se e ter uma família, o que era difícil de fazer com uma carreira de bailarina. “O meu marido não tinha nada a ver com o ballet, era diretor de uma companhia suíça de alumínio, e encontrámo-nos por intermédio de pessoas amigas. Conheci-o quando vim a Portugal, no ano do 25 de Abril, apresentar um espetáculo. Casei em 1976, já tinha quase 40 anos. Tínhamos 8 anos de diferença, ele era filho de pais portugueses mas tinha nascido na Bélgica, e nenhum de nós falava português. Mas conhecemo-nos cá e cá ficámos.”

A filha nasceu em 1978. “O meu plano continuava a ser deixar o mundo do ballet”, afirma Michele. Mas o ballet teimava em não a deixar a ela, e o plano B tornou-se o plano A. “Tinha um grande amigo que era diretor da Standard Eléctrica, uma grande empresa americana fabricante de aparelhos elétricos. E um dia sugeri-lhe que fizesse uma creche para os filhos dos empregados. Ele respondeu que a única coisa que podia fazer era dar aos filhos dos empregados aulas de ballet. (risos) E assim começou o Grupo de Ballet da Standard Eléctrica, um dos meus projetos mais giros. Dançámos no São Luís, dançámos no Porto, fizemos coisas muito bem feitas.”

Não damos valor ao que temos

Como é que uma pessoa que vem de Paris se habitua a este fim de mundo que era Portugal nos anos 70? “Eu queria mesmo afastar-me de Paris. E aqui reencontrei outro prazer em ensinar a minha arte. Os alunos portugueses podiam não ter a mesma formação que os franceses, mas eu até preferia começar a prepará-los eu mesma. Quando recebo um aluno ou aluna, prefiro ensiná-lo à minha maneira.” O grande problema agora continua o mesmo que nos anos 70: “Os miúdos não entendem, os miúdos decoram. E o ballet não é apenas um treino físico, também é um treino mental. Por exemplo, eu ensino-lhes desde pequenos os nomes de tudo em francês, porque cada passo tem um nome. Depois é só dizer-lhes o que há a fazer e aí vão eles.”

Na altura, sentiu que tinha chegado a um país que não tinha nada? “Senti. Mas acho que, se estou num país que não é o meu, tenho de aceitar a maneira de viver de quem é português. Não acho delicado dizer mal do país onde vivo. Mesmo assim, sinto que a mentalidade mudou muito. Quando eu cheguei, as pessoas eram mais educadas, tinham consideração pelos outros. Agora, não vejo muito isso. Mas que é um país formidável para viver, é. Claro que sou uma pessoa privilegiada, vivo perto de Cascais, perto do mar, num sítio absolutamente magnífico, com um sol maravilhoso e uma paisagem linda. Mas se não tiver cuidado, Portugal vai transformar-se no paraíso dos reformados estrangeiros.”

Os cérebros mais novos vão-se embora? “Claro, porque ninguém aposta na juventude. E eu não percebo por que é que isto acontece. Tenho alguns alunos que quando acabaram o curso foram imediatamente para o estrangeiro. E numa companhia nacional de bailado, o corpo de ballet tem de ser nacional. Se eu tiver algum aluno que queira continuar, mando-o para a escola de Annarella Sanchez, em Leiria.”

Apesar de tudo isto, gosta de viver em Portugal e continua a dizer que os portugueses aproveitam bastante mal o país que têm. “Estou aqui consigo neste dia maravilhoso no inverno, com sol, as pessoas podiam trazer os filhos à praia, podiam fazer um piquenique ou passear ao ar livre, mas preferem levantar-se tarde, fechar-se em casa ou ir comer hambúrgueres para o centro comercial.”

Lembra que a filha nasceu no princípio de Dezembro e no Natal já estava com ela cá fora no jardim. “Pois toda a gente achava estranhíssimo. Na maternidade onde ela nasceu, perguntaram-me: ‘Mas a bebé não tem mais roupa?’ (risos) Aqui afoga-se as crianças em roupa, está-se sempre com medo que elas tenham frio. Os pais dos meus alunos dizem-me muito: ‘Viemos procurá-la porque tem fama de ser uma professora muito disciplinada’. É verdade que o ballet traz disciplina, mas não sou eu que tenho de ensinar disciplina aos filhos, são eles!”

Hoje em dia temos medo do esforço? “Sim, os meninos não podem trabalhar muito, não podem cansar-se, queixam-se que a pressão é grande, que não conseguem, etc. Mas eu gosto demasiado de ballet para não o ver fazer como deve ser.”

O ballet vem primeiro

Hoje, com 87 anos, ainda ensina todos os dias na escola de dança que fundou, a Academia de Ballet AHBVA – Michele Destreez Morgado. “Estou lá todos os dias e tenho uma assistente muito competente, a Sandra Fartaria, que dá as aulas que eu já não consigo dar, além de ser responsável pela dança contemporânea. Mas muitas pessoas também não percebem que dança contemporânea não é apenas atirarem-se para o chão e darem uma cambalhota.”

Tem alunos desde os 6 anos. “Geralmente, os pais trazem-nos e eles fazem uma aula para ver se aceito ou não. Porque há crianças que claramente não nasceram para o ballet nem têm gosto naquilo. Se já disse isso a algum pai? Claro que já disse.” 

O que é preciso para se ser uma boa bailarina? “Depende do tipo de dança. Agora a especialização já é muito grande. Mas defendo que todos os bailarinos devem ter uma base de ballet clássico para dançar seja o que for. Mas não é a anatomia que vai fazer uma boa bailarina. Cada pessoa trabalha com aquilo que tem. E há muitos tipos de dança que se pode fazer. Na Rússia, havia grandes bailarinas que não eram anatomicamente perfeitas mas eram geniais.”

De alunas a amigas

Na sua academia também aceita rapazes, como o Tomás Martinelli, que começou com apenas 4 anos e mais tarde seguiu para o Conservatório Nacional e depois para a escola de Annarella Sanchez. Mas nota que ainda existe muito preconceito em relação aos rapazes no ballet.

“Continuamos a ter de lutar contra muitos preconceitos.” Como é que se luta contra preconceitos: falando abertamente de tudo com os filhos. “Eu, por exemplo, sempre falei de tudo com a minha filha. E às vezes até acho que falei de certas coisas demasiado cedo. Mas conversávamos muito. Mais do que mãe e filha éramos e somos duas amigas.”

A filha não seguiu ballet, é formada em biologia molecular e celular. “Ela estudou dança comigo mas nunca quis fazer daquilo a sua carreira. Queixava-se muitas vezes. Dizia-me muito: ‘Na tua vida, o ballet vem sempre primeiro, e só depois somos nós.’ E tinha razão. De facto a minha prioridade sempre foi o ballet. Mas ela sempre me incentivou. Nunca me disse ‘Fica comigo’, ou ‘Não vás porque eu preciso de ti’.”

É ainda amiga de todas as suas alunas, que adora, muitas das quais, mesmo quando já não são suas alunas, vêm lanchar e desabafar.

O que é que o ballet traz a uma pessoa que não vá ser bailarina? “Traz uma disciplina de vida fantástica. Eu posso ter problemas motores, mas a cabeça nunca me falha. No ballet, a cabeça trabalha sempre, e as pernas vão sozinhas.”

E para acabarmos onde começámos, costuma voltar a Montmartre? “Às vezes. Mas já não reconheço o sítio onde nasci. A França já não é a minha terra, é um país muito diferente. Veremos o que vai acontecer. Se me assusta? Lógico que assusta. Já não por mim, mas pelas crianças que estão agora a começar a viver. Mas enfim. Também não podemos pensar demasiado.”

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