
Combinámos o encontro na Fundação Gulbenkian, um dos dois lugares que Shahd sugeriu para fazermos a entrevista. Ali teria, umas horas mais tarde, uma visita guiada, a propósito da exposição de que é cocuradora – ‘Folha: Uma visita do jardim’ – patente na Galeria do Oriente Islâmico. Ao fim da tarde, uma conversa no Liceu Camões, a propósito da exposição ‘Gaza, a arte como pulmão’. Ainda nessa semana, o lançamento do seu livro de poesia ‘Chuva de Jasmim’, no outro espaço muito seu, a Casa do Comum. Uma semana superpreenchida, mas Shahd ainda assim conseguiu arranjar umas horas para falar connosco sobre a história familiar, a arte que a apaixona e o ativismo que marca a sua vida.
Falámos de genocídio, de humanizar um povo, de amor à terra, de saudade e sentido de pertença, de sofrimento e dor, de injustiça e de uma indiferença perante a dor que se vem tornando insuportável, de como o mundo mudou (não para melhor), dos estereótipos que custam a desaparecer, de feminismo e de como a esperança é a doença incurável dos palestinianos. Shahd é leveza, mas também assertividade, a viver há 19 anos em Portugal deixa passar um descontraído ‘pá’ de vez em quando, sinal de que já é mesmo cá das nossas.
Comecemos pelo início, onde e quando nasceu?
Só essa pergunta dava para falar horas. (risos) Então, nasci no Egito, mas não era suposto. O meu pai é palestiniano e a minha mãe egípcia. Os meus pais estavam a viver no Líbano, e era suposto eu ter nascido lá, só que em 1983 houve uma rebelião palestiniana e prenderam o meu pai. A minha mãe, como já estava no final da gravidez, decidiu viajar para o Egito e eu nasci 24h depois de ela chegar. Mas mais tarde fomos todos, os meus pais, eu e o meu irmão, viver para a Jordânia.
Mas diz-se palestiniana?
Sim. Os meus avós paternos são de uma vila na Palestina, ocupada em 1948, e que foi apagada do mapa. Eles foram expulsos da sua casa, da sua terra, onde sempre viveram, durante a Nakba [a palavra em árabe que significa a catástrofe e se refere à expulsão de 750 mil palestinianos de suas casas e terras por milícias sionistas]. Chama-se Al-Muzayri’a e foi uma das 530 vilas e cidades que foram destruídas e desapareceram. Todas as gerações que nasceram depois de 1948, quando se lhes pergunta de onde são, dizem a sua vila de origem, mesmo se aquela terra já não existe. Digo que sou palestiniana porque é esta a minha identidade, a identidade da minha família. Costumo dizer que a minha família foi forçada ao exílio por duas vezes. Os meus avós, em 1948, foram expulsos da sua vila palestiniana – curiosamente, também a minha avó estava grávida quando teve de sair de sua casa e deu à luz o meu pai numa tenda de refugiados em al-Muqata’a, perto de Ramallah – e depois em 1967 foram expulsos novamente e aí partiram para a Jordânia. Parece que a nossa história de vida é a de sermos forçados a sair de onde pertencemos. Na verdade, digo sempre que a minha história de vida começou em 1948, apesar de ter nascido muitos anos depois.
Já foi visitar o local onde era a vila dos seus avós?
Só depois dos Acordos de Oslo, em 1993, é que a maior parte das famílias puderam voltar à Palestina. Eu consegui voltar em 1998, com 15 anos, mas como as autoridades israelitas é que controlam a entrada das famílias, aos meus pais e a mim deram o cartão de identidade palestiniano, mas não ao meu irmão… e regressámos à Jordânia. Os meus pais tinham começado o projeto de uma casa, tinham esse sonho, mas tiveram de o abandonar.
O seu irmão continua a viver na Jordânia?
Vive em Itália e agora tem uma filha que se chama Aida, em árabe quer dizer ‘a mulher que regressa’. Já traz no seu nome a esperança de regressar a uma Palestina livre.
O cartão verde é o equivalente ao cartão de cidadão?
Há vários tipos de bilhetes de identidade palestinianos: o da Cisjordânia e de Gaza, o de Jerusalém, e ainda o dos palestinianos que têm cidadania israelita. Os palestinianos não podem andar livremente, têm de mostrar a identificação em check points. Por exemplo, eu, que tenho também nacionalidade portuguesa, se quiser ir com o meu marido a Jerusalém Oriental, que é território palestiniano, o meu marido, português, pode ir lá mas a mim não permitem entrar. A última vez que fomos, tive de ficar em Belém, a poucos quilómetros, isto apesar de ambos termos nacionalidade portuguesa.
Mesmo tendo passaporte português?
Os palestinianos vivem numa situação de apartheid, em que não lhes é permitido entrar em certas ruas, por exemplo. Se a Gisela quiser ir à cidade de Hebron, que fica na Cisjordânia, pode entrar, mas aos palestinianos é-lhes vedada a passagem por várias ruas. Eu, por exemplo, não posso ir à minha vila de origem. A primeira vez que eu percebi o que é ser palestiniana foi quando uma amiga dos meus pais me levou a uma vila perto de Ramallah e apontou para uma montanha mesmo em frente e disse, “ali fica a vila dos teus avós”. Lembro-me perfeitamente de estar a olhar para a montanha e atrás de mim estar um carro de colonos israelitas a buzinar insistentemente, como a dizer um furioso ‘afastem-se’, e eles poderem passar o check point e ir em direção ao lugar onde nasceram e viveram os meus avós, e eu não.Mesmo mostrando o meu passaporte português, disseram-me “árabe, vai-te embora daqui”. Para a ocupação israelita, os palestinianos não são propriamente seres humanos.

“Lisboa é uma capital europeia, mas ao mesmo tempo não é, e eu identifico-me muito com estes lugares-fronteira.”
Voltando um pouco atrás, cresceu então na Jordânia…
Sim, vivi a maior parte da minha vida na Jordânia. Os meus avós maternos estavam no Egito, e por isso visitámo-los muitas vezes, não cheguei a conhecer a minha avó paterna, ela morreu antes de eu nascer, mas conheci o meu avô paterno e tenho muito boas memórias dele. Acho que tive uma infância normal e curiosamente guardo boas memórias das brincadeiras. Na altura, havia a Guerra do Golfo, portanto era um tema muito presente no nosso dia a dia, mas para nós, crianças, víamos tudo como uma brincadeira, as janelas com fita cola, os simulacros nas escolas, para sabermos os lugares de segurança. Era a realidade que víamos na televisão e inventávamos ataques, fazíamos ‘bombas’…
Já tinha uma ideia do que queria ser quando crescesse?
Sonhei ser muitas coisas. Comecei a escrever contos aos 8 anos num caderno com a capa aos quadrados que eu tinha, por isso a escrita sempre esteve muito presente na minha vida. O meu pai era escritor, mas tinha outros trabalhos além disso. Lembro-me de gostar de dançar, fiz ballet, mas num ato de rebeldia contra os meus pais, que queriam muito que eu continuasse, abandonei essa ideia de um dia para o outro. Mais tarde, escolhi o curso de Línguas e Tradução, que ainda é algo que faço. Aliás, nunca fiz uma só coisa na vida. Costumo dizer que exerço liberdade naquilo que faço, porque faço tanto curadoria, como escrita, investigação, tradução, performance…
E como é que veio para Portugal?
Fui por amor, conheci um português na Jordânia e vim visitá-lo a Portugal. É muito engraçado, porque quando estava a sobrevoar Lisboa, vi uma cidade que aparecia muito nos meus sonhos. Então percebi que tinha uma ligação forte com Lisboa. Depois fui para Coimbra fazer o Mestrado e Doutoramento, mas Lisboa foi o canto que eu escolhi.
Foi como uma casa…
Eu nunca soube o que era a casa, nunca tinha um lugar que fosse meu, porque a Palestina era o meu país, as minhas memórias eram na Jordânia, o Egito era o meu lugar de nascimento. Depois decidi que era Lisboa, mas agora ando muito zangada com a cidade.
Porquê?
Parece que está a abandonar-nos, com todas as mudanças que estão a acontecer, o turismo excessivo, a gentrificação… Está a ficar igual a todas as outras cidades frias. Quando vim para cá, não queria nem Europa nem o mundo árabe, Lisboa era uma cidade que ficava ali no meio. Era um lugar muito relacionado comigo, com a minha identidade, não estou no Sul, nem no Norte, é um lugar no meio e para mim era perfeito, este lugar de fronteira, com o qual me identifico muito.
Veio para cá quando?
Em 2006, e em 2008 fui para Coimbra, onde vivi, estudei e dei aulas de Árabe na faculdade enquanto tirava o mestrado e doutoramento em Estudos Feministas, mas sempre que podia vinha a Lisboa.
Os seus pais e o seu irmão vinham cá visitá-la?
Sim. O meu pai faleceu há dois anos, em Lisboa. Adoeceu com um cancro muito rápido. Curiosamente, o último livro que o meu pai escreveu foi um romance, ‘Saudade’, em que a história acontece entre Portugal e a Palestina. Fez o caminho dele entre Palestina e Lisboa também através deste livro, em que cada capítulo começa com um verso de Fernando Pessoa.
Foi fácil a sua integração aqui em Portugal?
Não senti grande diferença cultural, nem na comida, também temos muito azeite, pão, arroz. Há uma coisa que senti dificuldade, foi o humor português. Demorei também a gostar de teatro e agora o meu encenador favorito é português, o Tiago Rodrigues. E levei algum tempo a apreciar a poesia portuguesa. Curiosamente, agora vou lançar um livro de poesia em português, ‘Chuva de Jasmim’.
Antes de vir para cá conhecia autores portugueses?
Sim, sobretudo José Saramago, também porque ele falava sempre pela libertação da Palestina e na situação dos territórios ocupados.

“O poeta Mahmoud Darwish escreveu: ‘o povo palestiniano sofre de uma doença incurável chamada esperança’.”
A sua tese de mestrado foi sobre ‘Feminismos de corpos ocupados: as mulheres palestinianas entre duas resistências’. Que resistências são essas?
As duas resistências são lutas contra a sociedade patriarcal e contra a ocupação. Lutando contra a ocupação sionista, as mulheres palestinianas ganharam um lugar de resistência, têm uma força muito delas. Em muitas coisas estão melhor do que outras mulheres árabes. Só em Portugal, por exemplo, temos novamente uma mulher como embaixadora, temos juízas, presidentas de câmaras nas cidades importantes. Têm esta parte emancipada, ainda que não possamos dizer que o são, como nenhuma mulher neste mundo. A primeira data em que as mulheres saíram de casa para se juntarem aos homens na luta é, salvo erro, em 1882. A primeira exposição exclusivamente de mulheres artistas na Palestina foi nos anos 50, nos Estados Unidos foi só nos anos 70. As mulheres palestinianas ganharam um lugar onde têm voz.
Esse lugar de voz tem a ver com a resistência…
As primeiras organizações feministas na Palestina são dos anos 20 do século passado, começaram a lutar pela liberdade, depois a escrever nos jornais também sobre educação, casamento, começaram a ter um discurso e uma voz na praça pública.
A imagem da mulher árabe é de uma mulher submissa.
Sim, existem muitos estereótipos. Há uns anos, fui fazer umas sessões nas escolas sobre mulheres árabes, onde mostrei os livros que se vendem aqui nas livrarias. Eram todos sobre a opressão da mulher árabe, a vendida, a queimada viva… Quando perguntei aos alunos na sala quem tinha lido aqueles livros, vi várias mãos no ar.
Depois mostrei fotografias de mulheres árabes famosas internacionalmente, da área da economia, da política, poetas e artistas. Praticamente ninguém conhecia.
Há um artigo de Lila Abu-Lughod, uma antropóloga palestiniana norte-americana, de que eu gosto muito, cujo título é ‘Será que as mulheres muçulmanas precisam de salvação?’ Ela escreve uma coisa muito interessante, como é perigoso alguém falar da liberdade das mulheres com uma tropa ao lado. Lila fala da situação das mulheres iraquianas, que eram das que mais liberdade tinham no mundo árabe, e depois dos Estados Unidos lá terem estado a situação para elas piorou imenso. É muito fácil lutarem pela liberdade das mulheres para tirarem o véu, quando muitas nem sequer querem tirar, mas Lila pergunta: ‘quantas pessoas assinam uma petição para distribuição da riqueza ou para ajudar as mulheres palestinianas que sofrem e dão à luz nos check points?’
As pessoas espantavam-se quando diziaque o seu mestrado era em Estudos Feministas?
Espantavam-se e justificavam o meu interesse no facto de eu ser uma mulher árabe, havia muitas ideias-feitas, muitos estereótipos, mas acho que neste momento o racismo e a xenofobia ganharam um lugar que eu nunca tinha visto em Portugal. Recentemente, estava na rua a falar ao telefone em árabe e alguém aproximou-se de mim e disse ‘no tempo de Salazar é que era bom’. Nunca me tinha acontecido antes. Quando cheguei, nunca me senti estrangeira e agora, que não sou, sinto-o.
Há uma vida antes e depois de 7 de outubro 2023?
Para o povo palestiniano não, porque, como já disse, a ocupação da Palestina começou em 1948, o genocídio começou desde a primeira ideia de pensar em limpeza étnica da Palestina, e a partir desse dia o que vemos é uma continuação da limpeza étnica numa escala nunca antes vista. O genocídio intensificou-se de uma forma que nunca imaginámos que pudesse ser feito em tão pouco tempo. O que mudou, foi que há um número tão grande de pessoas que estão a ser mortas perante os olhos do mundo inteiro e não se faz nada. Percebemos que o mundo inteiro já não é um lugar seguro.
Deixou de ter esperança?
O poeta Mahmoud Darwish escreveu que o ‘povo palestiniano sofre de uma doença incurável chamada esperança’. Eu acho que a nossa resistência é mesmo não perder a esperança. Nós estamos a ver as pessoas em Gaza, com tudo o que está a acontecer, a voltar para casas que já não existem, a limpar, a fazer um bolo, café. Isto tem a ver com a esperança. Para mim, a arma mais forte do povo palestiniano é o amor à vida, que é a arma que mais perturba o colonizador, porque, depois de tanta morte, continuamos a amar a vida e a celebrá-la, nem que seja a beber um café com tudo destruído à volta. E estamos a ver que a arte continua, mesmo a meio de um genocídio, ainda há poesia, como o poema de Refaat Alareer que ficou famoso, ‘Se eu tiver de morrer, alguém tem de viver para contar a minha história…’. Ele foi assassinado em dezembro, num ataque aéreo israelita, em que também morreram seis membros da sua família. Também vemos, no meio dos escombros, raparigas a dançar Dabke, a dança tradicional palestiniana.
Já viu a série ‘Mo Amer’, na Netflix?
Deixei de ver Netflix quando retiraram filmes palestinianos da plataforma.
É uma comédia que dá um rosto aos palestinianos,aos refugiados, a pessoas que vivem sem documentos.
A ausência do rosto, da arte, da voz palestiniana no espaço público, nos meios de comunicação, desumaniza-nos. Quando aparecem é sempre o terrorista, o que oprime as mulheres, ou a mulher que tem véu e não tem voz, a vítima e oprimida. Mas desde que começou este genocídio muitas pessoas começaram a procurar outras fontes, e os mais jovens estão atentos às redes sociais e muito interessados na questão da Palestina. Veem jovens como eles, que afinal não somos assim tão diferentes. Houve uns vídeos, vistos por milhares de pessoas, de um palestiniano muçulmano típico, com o traje e barba, a fazer o luto da sua neta, a falar de como lhe penteava o cabelo, dos brinquedos, e refere-se a ela como a ‘alma da minha alma’ (‘soul of my soul’). Também já morreu. Foi importante ver como este homem, que tem esta imagem, tipificada como o mau, de barba, terrorista, se derretia pela neta, dá uma outra imagem dos homens palestinianos.

“Mesmo com tudo destruído à volta, temos necessidade de celebrar a vida, fazendo um bolo ou dançando Dabke.”
É importante terem vozes de judeus contra o genocídio?
Muito importante, é fundamental não confundir judeus com israelitas. Os grupos de judeus pró-palestinianos são dos mais ativos contra o genocídio. Nos EUA, temos o Jewish Voice for Peace, aqui Judeus pela Paz. Estes grupos são muito ativos e na verdade precisamos muito do seu apoio, porque para a propaganda israelita qualquer pessoa solidária com a Palestina é acusada de antissemitismo, ainda que estejam a defender os direitos humanos. As vozes mais vocais, muitos deles são judeus, Noam Chomsky, Judith Butler, Norman Finkelstein, Ilan Pappé… Mesmo as pessoas que anteriormente falavam ‘dos dois lados’ perceberam agora que não há dois lados, há o ocupante e o ocupado, colonizador e o colonizado, um opressor e o oprimido. Não há uma guerra, é uma ocupação.
Que livro aconselharia as pessoas a lerpara conhecerem melhor os palestinianos?
Leiam poesia palestiniana, porque ali vão encontrar muita coisa para além da poesia. É importante que as pessoas saibam que a Palestina é muito mais que guerra e ocupação, é oliveiras, figueiras e jasmim, é cultura literária, musical, poética e gastronómica fortes.
A sua poesia também?
(risos) Também, mas também há outros livros publicados em Portugal, por exemplo, ‘Se Eu Tiver de Morrer – Poesia de Resistência Palestiniana Séc. XXI’, da Almedina.
Em março [quando a entrevista foi feita] celebra-se o Dia Internacional da Mulher, o que acha importante dizer às portuguesas?
O Dia da Mulher é um dia de luta para todas as mulheres, gostaria que pensassem no genocídio que está a acontecer através dos corpos das mulheres, que não têm condições para dar à luz, não há hospitais… Não têm coisas tão simples como acesso a pensos higiénicos… O feminismo com o qual me identifico é interseccional, penso nas mulheres da Palestina, nas alterações climáticas, nas pessoas trans, no capitalismo, imperialismo, todas estas lutas estão ligadas. Temos de lutar pela nossa liberdade e de pensar também na liberdade de todos.