
Numa ACTIVA onde celebramos sempre o poder das causas, aqui fica uma pessoa que continua a defender a sua: mesmo que, como ela própria diz, haja dias em que desespere. Temos de escolher a alegria, diz ela.
Sei que não se deve entrevistar pessoas que conhecemos, mas desta vez quebrei a regra. Conheço a Inês há muito tempo, ela é aquela pessoa que eu gostava de ser e nunca consegui, e mesmo assim descobri imensa coisa que não sabia.
Além de casada com o amor da sua vida, mãe de três filhos, a Inês é professora na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica, onde coordena a Iniciativa de Apoio a Refugiados, e presidente do Centro de Reflexão Cristã, mas estes títulos compridos não condizem com a pessoa leve que ela é. A sua missão na vida é pôr o seu privilégio, como ela diz, ao serviço dos outros, e ajudar quem precisa, quer através de bolsas de estudo quer pela ação direta, pondo quem precisa de apoio em contacto com quem pode ajudar.
Ao princípio liguei-lhe só para uma página, pedindo-lhe que me falasse um pouco do seu ativismo. Disse-lhe eu: ‘Olha é uma pena porque assim não posso dizer a pessoa fantástica que tu és’. ‘Nem eu quero’, respondeu-me ela. ‘Tu vê lá o que é que me arranjas’.
Depois decidi que tinha que dizer a pessoa fantástica que ela é, por isso olhem: cá fica dito. Agora passo-lhe a palavra, numa conversa em que até eu fiquei a conhecê-la melhor.
Tu és uma pessoa que sempre se preocupou com os outros, principalmente quem chegava de fora e não tinha ninguém. Isso vem de onde, da tua educação, da tua fé, do quê?
Olha, há pouco tempo chamaram-me ativista e eu nunca tinha pensado nisso, mas senti-me orgulhosa, porque acho que a ação é a concretização daquilo em que nós acreditamos, e eu como cristã penso nisso mesmo com sentido de missão. Às vezes quando tenho alguma dúvida, penso nos ensinamentos do Evangelho: chegar aos invisíveis, escutar os que estão nas margens, aceitar todos e procurar reparar as injustiças. Sei que isto soa demasiado piedoso mas acho que, se me considero cristã, não é só da boca para fora.
No nosso país maioritariamente católico, muitos cristãos ainda não põem em prática os ensinamentos mais básicos do cristianismo?
Talvez. Mas atenção que eu não me considero moralmente superior nem quero pregar moral a ninguém. É simplesmente a maneira como eu vivo. Faço aquilo que posso, não porque sou boazinha mas porque gosto de justiça. E é justo que estas pessoas tenham as mesmas oportunidades que eu. Não decidi envolver-me em causas, foi um encontro do meu contexto, de pessoa com acesso a ideias, a conhecimentos e a outras pessoas, com pessoas que neste momento não estão nesse lugar de privilégio.
E onde é que encontras estas pessoas?
Encontro-as na paróquia ou na Universidade, mas não distingo se uma pessoa que precisa de ajuda é portuguesa ou estrangeira. Essa distinção só a faz quem nunca se mexeu para ajudar ninguém, porque quem está a ajudar não quer saber de onde vem aquela pessoa, a injustiça é a mesma. Quem gosta de ajudar não distingue nacionalidades. O que eu faço melhor é unir pontos: ponho as pessoas em contacto, lembro-me que a Catarina pode fazer alguma coisa pela Kanza, por exemplo. Tento criar redes de apoio, que muitas vezes são pontuais, desbloqueiam uma situação.
A vida é difícil para quem chega ao nosso país?
A vida é muito difícil para quem, por uma ou outra razão, não está no centro. Por exemplo, uma estudante refugiada síria tinha um agendamento na Segurança Social e não a deixaram entrar. Ela tem uma doença nas pernas e não pode estar muito tempo em pé. Ela tentou explicar mas a pessoa que estava à porta nem a ouviu. E ela não foi atendida. Ora eu tenho a certeza que, se tivesse ido com ela, isto não tinha acontecido, porque infelizmente o atendimento muda logo. Há muitas situações que uma pessoa em circunstâncias normais seria capaz de desbloquear, mas que estas pessoas – mais pobres, menos escolarizadas, de minorias, imigrantes sem meios e domínio da língua portuguesa – não conseguem resolver.
Mas se fores com essas pessoas, o acompanhamento é logo diferente…
Logo. Não há formação das pessoas que estão nos guichets e não têm noção do impacto que têm na vida dos outros. Mais do que racismo, em Portugal existe uma coisa a que a filósofa espanhola Adela Cortina chama ‘aporofobia’: a fobia dos pobres. O nosso problema não é com os imigrantes nem com os refugiados, é com os imigrantes e refugiados pobres. O meu marido é imigrante, é espanhol, e o único problema que teve em Portugal foi quando perdemos um jogo de futebol com Espanha (risos).
Tratamos mal quem chega?
Acho que acima de tudo tratamos os estrangeiros como tratamos os portugueses: não há nada para ninguém. O nosso maior mal é que não há dinheiro para (quase) nada. E sofremos todos. O problema é que quem está num país estrangeiro tem uma dificuldade acrescida que é um desenraizamento que não se recupera. Se eu for a um centro de saúde e for mal atendida, ligo à minha mãe, ligo aos meus amigos, queixo-me, etc. Se eu for imigrante, fecho-me. Não tenho a quem ligar. Não tenho quem me ouça, quem me ajude, quem me dê alternativas, quem me oriente, quem me console. Fico perdido e sinto que tudo é difícil. E quando me dizem: ‘eles têm de aprender que a vida é difícil’. Eles atravessaram o Mediterrâneo de bote, que mais têm a aprender sobre a dificuldade da vida?
É difícil ajudar estas pessoas?
Depende. A persistência é difícil, até porque as pessoas não são perfeitas. Às vezes preferia ficar sossegada na minha vida e não me chatear. Mas como é que posso fazer isso quando as pessoas precisam de ajuda? Se o lugar onde nós estamos nos permite fazer pequenos gestos que façam a diferença, temos obrigação de os fazer. Mas não precisamos de fazer super-coisas. Nem toda a gente pode ajudar de forma efetiva. Mas o simples facto de uma pessoa se comover já é um passo em direção ao outro. Já é uma abertura. É estar disposto a calçar os mesmos sapatos. E tudo parte disso. Se vemos as notícias e nos comovemos, estamos a ser humanos. Isto não é suposto ser um concurso de santidade.
Este mundo que está a nascer agora é assustador?
O investigador português Vicente Valentim publicou este ano ‘O fim da vergonha’ (Gradiva, 2024), uma versão da sua tese de doutoramento que, no Reino Unido, recebeu o prémio Jean Blondel para a melhor tese em Política. . E ele afirma que não houve nenhuma alteração no pensamento das pessoas. O que deixaram de ter foi vergonha de o expor. E a partir desse momento, tudo explodiu. Sim, há pessoas racistas, mas sempre houve.
Estás otimista ou pessimista?
Olha neste momento já nem sei. Gosto de pensar que sou uma pessoa positiva, e há momentos em que temos de fazer escolhas que não nos parecem fáceis. Temos de escolher a alegria, temos de escolher a esperança, temos de escolher a solidariedade, temos de escolher ver as coisas pelo lado positivo e temos de o fazer todos os dias, porque se não o fizermos, estamos perdidos. Há dias em que só a fé é que me ajuda a dar algum tipo de sentido a tudo isto. Mas é muito difícil.
O que mais te preocupa?
A questão da concretude: as pessoas refugiadas não são uma abstração. E nem sempre são pobres, o que não significa que não precisem de ajuda financeira. Às vezes ouço coisas como ‘mas eles não precisam, eu preciso e a mim ninguém me ajuda’, eu gostava que as pessoas soubessem que, no caso da Universidade Católica, não há nenhuma competição com os portugueses, a Universidade simplesmente acrescentou algumas bolsas para estas pessoas. E nós temos de escolher o bem, que é para todos.
No mês passado, uma das nossas alunas deste grupo, uma ucraniana, foi a primeira a concluir os seus estudos, neste caso em Som e Imagem. E o que ela faz é bom para todos.
Temos ainda aquela ideia de ‘ah são refugiados, vêm tirar-nos o que é nosso’…
E não vêm nada, porque tudo aquilo que é para os refugiados é financiado pela União Europeia, não sai do orçamento de Estado. Isto é importante que se diga. A democracia não tem maneiras simples de resolver algumas coisas, mas não podemos ser iguais aos que a combatem. Às vezes tenho vontade de perder a cabeça, mas o lado da decência só pode continuar a ser coerente. Isso nem sempre é fácil. A única coisa onde às vezes vou buscar sentido é às minhas aulas, principalmente no primeiro ano. Não o farei a todos e às vezes não adianta, mas tenho esperança de conseguir passar-lhes alguma coisa.
Qual é a tua máxima de vida?
É tão fácil fazer o bem. É fácil fazer boas escolhas e não sei porque é que às vezes não o fazemos. Porque nos sentimos traídos, porque somos levados na voragem dos dias, porque caímos na nossa mesquinhez, mas tudo isso são pequenas coisas, e não custa assim tanto ser bom. Há uns tempos, uma senhora que eu conheço foi à Segurança Social pedir baixa porque ficou cega com cataratas que nunca mais operavam. E a pessoa do guichet, num primeiro instante, respondeu: ‘Para isso é preciso voltar e pedir um papel à sua patroa’. Mas depois pensou e disse: ‘Espere, eu consigo ajudá-la a resolver isso aqui’. E assim fez. Portanto, às vezes é fácil ajudar os outros. Esta senhora teve sorte, mas porque uma pessoa decidiu ajudá-la.
Não devíamos estar dependentes da sorte…
Pois não. Eu sempre que apanho gente boa nos serviços, peço o livro de elogios. É que também andamos sempre a queixar-nos e não nos motivamos uns aos outros. Uma vez fui com uma pessoa refugiada à Loja do Cidadão do Cacém. Encontrámos uma senhora que não nos deixou sair sem nos resolver a situação. E eu pedi o Livro de Elogios. Quase toda a gente já pediu o Livro de Reclamações. Mas quem é que já pediu o Livro de Elogios?
Culpada. Eu nem sequer me lembro que isso existe…
É normal porque não estamos numa cultura que promova o elogio. São pequenas lutas. O mais importante é encontrarmos um sentido para a vida, não perdermos o rumo, e acima de tudo, não perdermos a paciência (risos).