Preocuparmo-nos com o ambiente, para além de todas as preocupações de ordem prática que temos de gerir no dia a dia, parece uma tarefa impossível. Habituámo-nos a ver a natureza como algo exterior a nós, que conseguimos dominar e estará sempre ali para nos servir. E, sobretudo, habituámo-nos a acreditar que tudo acabará por se resolver. Mas já passámos esse ponto, as soluções passam pelos governos e entidades governamentais de todo o mundo, mas também por nós. A verdade é que fazemos parte integrante do grande ecossistema que constitui o nosso ambiente e temos de (re)começar já a viver em harmonia com ele: não só pela sobrevivência das gerações futuras, mas também, como a pandemia e a guerra vieram demonstrar, pela nossa própria sobrevivência, aqui e agora.
Uma questão de inteligência
É como Helena Freitas, investigadora, professora catedrática de Ecologia e Biodiversidade e diretora do Parque de Serralves, define a preocupação ambiental. “Preocuparmo-nos com o ambiente é ter uma relação cúmplice com o planeta que habitamos e do qual dependemos. Somos parte da natureza e precisamos que ela continue a garantir a qualidade de vida que todos desejamos.” E até a própria possibilidade de sobrevivermos… “A natureza garante-nos um conjunto de bens e serviços que são indispensáveis à nossa sobrevivência, portanto, cuidar do planeta e do meio ambiente significa cuidarmos de nós, daqueles de quem gostamos e daqueles que hão de vir, por razões de saúde direta, de bem-estar, e também de sobrevivência coletiva. Cuidar do ambiente é a forma mais inteligente de vivermos porque é a forma de assegurar que temos uma vida com qualidade e conseguimos garantir esses bens e serviços que derivam dos ecossistemas e da sua integridade.” Entre esses bens e serviços que a natureza nos proporciona estão a disponibilidade de água e alimento, do ar que respiramos, da polinização que garante a saúde do sistema alimentar… tudo aquilo de que não podemos mesmo prescindir. Do ponto de vista material, mas não só.
A Natureza somos nós
“Somos uma entidade biológica e sentimos isso de uma forma muito clara com a pandemia, sentimos o impacto de uma disrupção dos sistemas, particularmente da floresta tropical, que trará cada vez mais desequilíbrios nesta relação entre agentes patogénicos e hospedeiros, o que significa que estaremos cada vez mais expostos a este tipo de eventos, designadamente vírus, bactérias, fungos, etc., que circulam na vida. E nós somos parte dela e percebemos agora essa nossa vulnerabilidade.”
Outra dimensão vital da natureza, que também se tornou clara durante o confinamento no início da pandemia, é o bem-estar emocional que nos proporciona, como explica Helena Freitas. “A dimensão criativa, estética e de lazer que a natureza tem também é uma questão relevante. Somos mais criativos quando temos maior proximidade com a natureza e a relação mais cúmplice que devemos ter com as outras formas de vida.”
Mais desenvolvimento económico e social
Helena Freitas acredita que, ao contrário do que ouvimos muitas vezes, a defesa ambiental não só é compatível com o desenvolvimento económico como é fundamental para resolver os problemas sociais. “Esse discurso do incompatível é aquele que nos conduziu aqui: o ‘não há outra solução, tem de ser assim’… E isso agora é tão visível. Veja-se a relação de dependência energética que construímos com a Rússia… evidentemente que isto foi um erro. Agora querem colocar a energia nuclear como solução, mesmo transitória, e conseguiram incluí-la na taxinomia verde, e o gás natural também. Porque nos dizem que é a única forma de produzir energia, quando já temos hoje, cada vez mais, tecnologia que nos permite fazer mais rapidamente a transição energética ecológica e essa tem de ser a aposta.”
A importância do sistema alimentar
“Ele está no centro das questões ambientais, é absolutamente estratégico e determinante. Todos queremos alimentos que não tenham químicos nem contaminantes, percebemos a importância daquilo que consumimos para o nosso bem-estar, a nossa saúde e a nossa esperança de vida, e percebemos que há alimentos que são preparados de uma forma que claramente põe isso em risco”, diz a especialista. “Os contextos de agricultura intensiva ou superintensiva são os mais agressivos do ponto de vista social e ambiental, porque são situações em que a produção é desligada do contexto. Nos últimos 70 anos, construímos um sistema alimentar completamente desligado do contexto territorial, das condições ambientais e sociais, da remuneração e do impacto ambiental que representa, simplesmente porque tanto faz onde [o alimento] é produzido. Eu nem lhe chamo agricultura, mas sistema alimentar porque é um sistema, perverso e construído de forma desligada do contexto, que não estima nem incorpora os verdadeiros custos sociais e ambientais. E nem sequer responde ao problema essencial da fome no mundo, pelo contrário, tem mil milhões de pessoas no hemisfério norte com problemas de saúde porque comem demais, e tem o dobro desses seres humanos que vivem no outro hemisfério e não têm acesso ao mais básico.”
A mudança não será fácil, terá custos e levará tempo, mas sairá bem mais cara se nada for feito. Helena Freitas acredita que o desígnio de uma civilização ecológica já impregnou a comunidade científica, o que levará a soluções cada vez mais acessíveis e que, embora haja muito por fazer, o caminho já está a ser feito. Mas o esforço terá de ser de todos, sem exceção, a começar pelos mais jovens, que herdarão o planeta que lhes deixarmos. “A forma como nos organizamos atualmente dispensa os jovens, o que é absurdo. Como queremos que sejam cúmplices ou responsáveis quando nem sequer são chamados a participar? Temos de nos organizar de outra forma e perceber a importância que tem este valor coletivo que queremos e que é inspirador da mudança, ele tem de chegar às novas gerações e às práticas educativas.”
As grandes decisões ambientais são políticas, mas nós como cidadãos e consumidores também temos algum poder. Quando votamos, quando optamos por usar energias limpas e renováveis, quando entramos na economia circular, quando compramos bens e serviços que respeitam as pessoas, os animais e a natureza, quando poupamos recursos, o poder da mudança está nas nossas mãos. “Nós existimos e somos uma entidade em relação: dentro de nós, com as outras formas de vida que coabitam connosco e no planeta também”, diz Helena Freitas. “Esse sentido da vulnerabilidade e da dependência da vida favorece um comportamento mais coletivo, mais amigo, mais disponível, mais cúmplice: essa é a primeira mensagem que uma civilização ecológica tem de inspirar.”
Os sinais são cada vez mais claros e não há outra escolha: o futuro tem de ser ecológico… ou não chegaremos lá.
Doutorada em Ecologia pela Universidade de Coimbra, com um pós-doutoramento na Universidade de Stanford (EUA), Helena Freitas é uma das nossas maiores autoridades em ecologia e biodiversidade. Fundou a Sociedade Portuguesa de Ecologia, que presidiu, e foi Vice-Presidente da Sociedade Europeia de Ecologia.
É Professora Catedrática na área da Biodiversidade e Ecologia no Departamento de Ciências da Vida da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, detentora da Cátedra Unesco em Biodiversidade e Conservação para o Desenvolvimento Sustentável daquela Universidade, Coordenadora da unidade de investigação Centre for Functional Ecology – Sciencefor People and the Planet, que fundou, e Diretora do Parque de Serralves.
Está nomeada para o Prémio ACTIVA Mulheres Inspiradoras 2022, na categoria Sustentabilidade.