Depois de uma vida agitada, a brasileira Cláudia de Souza converteu-se ao budismo e tornou-se a Monja Coen, uma das mais influentes oradoras, escritoras e divulgadoras do mundo. Sempre fui uma grande fã, embora não seja particularmente conhecedora do budismo ou dos ensinamentos zen, o que diz muito sobre a capacidade de comunicação da Monja. Que fazemos quando um dos nossos ‘gurus’ vem a Portugal? Vamos lá conhecer ao vivo. Conversámos longamente numa visita que fez a Portugal, e a propósito do livro ‘Vida e morte’ (Ed. Farol) falámos sobre fins, princípios, recomeços e angústias existenciais.
Buda significa ‘aquele que desperta’. Como é que cada um de nós pode despertar?
Não é preciso ser monge para despertar, é da natureza humana. Mas é preciso procurar. Ela não cai do céu e ninguém pode dar para você. Tem que querer, procurar e praticar, fazendo meditação e observação profunda da realidade de si mesmo. O primeiro passo é observar-me a mim e ao mundo, a tudo o que me cerca.
Fala muito de despertar, mas esse despertar aconteceu na sua própria vida. Estudou num colégio de freiras. Como é que se tornou budista?
Meu pai era ateu e minha mãe católica. Quando eu tinha 11 anos, comecei a questioná-la e a pensar em coisas como ‘o que é amor? O que é ódio? O que são o sentimentos?’ Com 13 anos decidi não ir mais à igreja, porque não sentia mais afinidade. Na minha família, eu via comidas diferentes na mesa da sala e na mesa da cozinha. E me questionava: ‘isso não é um ensinamento de Jesus’.
Chegou a pensar seguir a vida religiosa mas não seguiu…
Casei muito cedo, tive uma filha, voltei a estudar. Queria formar-me em teologia mas vivia num país onde os professores não eram respeitados. Entrei em direito, não gostei, e ao mesmo tempo comecei a trabalhar num jornal de S. Paulo. Foi uma descoberta. Além disso, eu também adorava ler. O primeiro livro que eu li foi ‘O Mandarim’ de Eça de Queirós, que me mostrou exatamente o que eu entendia por despertar, tudo o que implicava ter consciência social e pessoal: eu quero ser reconhecida socialmente ou quero plenitude de consciência?
O que é que o jornalismo lhe ensinou?
O jornalismo deu-me o conhecimento das pessoas, a capacidade de observação do que acontecia e a facilidade em fazer perguntas. Eu tinha 19 anos e muita vergonha de fazer perguntas, mas acabei por descobrir que eu não era eu. Você faz-me perguntas que acha que o leitor gostaria de saber, não você. O zen é isso mesmo. Eu não sou eu, eu sou apenas um instrumento. Apenas faço as perguntas que acho que as pessoas gostariam de saber. Então na altura, pensei: que alternativas há na sociedade? Que outras maneiras de viver? Na altura o Brasil vivia uma ditadura, um governo muito opressor, e eu via as manifestações na rua. Então descobri uma forma de viver que não passava pela violência. Vi monges que se queimavam em praça pública, morriam queimados sem se mexerem, e aquilo impressionou-me imenso. Pesquisei sobre um grupo zen na Califórnia, fiquei muito curiosa sobre isso, fui para lá, e a partir daí percebi como viver sem ser dominada pelo sistema. Desiludi-me do jornalismo quando perdeu o romantismo, e tornei-me monja.
O que é que o budismo nos ensina?
O budismo ensina-nos a estar presente. A sua vida toda está em você mas precisamos uns dos outros, uma forma de vida depende da outra. E aí vem a gratidão, a humildade. Queremos controlar tudo, mas algumas coisas podemos controlar, outras não. Posso controlar a minha respiração, por exemplo. Posso escolher como penso a realidade. O Brasil passou por uma grande luta agora entre partidos políticos, houve muitas ofensas. Mas a democracia é isso, é discutir pontos de vista opostos ao nosso.
Uma monja vota?
Claro que vota! Nós temos pensamento político! Além disso, se não votamos não podemos viajar. Não se esqueça que votar no Brasil é obrigatório…
Como é que por um lado encontramos a paz e por outro lado deixamos a nossa marca no mundo? Como encontramos esse equilíbrio entre ação e contemplação?
A meditação é importante mas não chega. É como rezar. Se você continuar rezando e não faz mais nada, nada muda no seu mundo. Ser budista não é viver imóvel nem ficar trancado numa cela em meditação. Meditar também é treinar a observação, é não andar distraído, é deixar a nossa marca na realidade. Por isso nós ensinamos a atenção, a percepção e a concentração, porque interessa aos governos de todo o mundo que sejamos manipuláveis, que sejamos distraídos. Então vamos ser zen, isto é, responsáveis, concentrados, livres, pessoas que não são manipulados e não manipulam ninguém.
Também somos manipuladores?
Claro. Nós também controlamos, não somos apenas controlados. Todos nós somos pequenos ditadores, querendo controlar tudo e todos. O zen é perceber quando isto é adequado e quando não é. Claro que quando uma criança corre para a estrada, nós agarramo-la, até bruscamente, porque ela corre perigo de vida e queremos protegê-la. Mas não podemos ter acções movidas pela raiva. Se eu ficar indignada por exemplo com uma mentira, eu não tenho de ter raiva: eu vou-me manifestar, mas não com raiva. Eu tenho de observar, pensar, entender o que está por trás, porque é que esta pessoa está mentindo. Uma pessoa que mente, tem medo. Quem é suficiente, não mente. Quem não pensa como eu penso não é meu inimigo. É uma pessoa que não teve a mesma educação, o mesmo treino, a mesma visão. Se o outro joga ódio no mundo e você capta isso e se transforma num átomo de ódio, está fazendo o jogo do outro e aumentando a sua energia maléfica.
Porque é que temos tanto medo do outro?
Pela insegurança do personagem frágil que criámos para sobreviver. Eu preciso que confirmem comigo quem eu sou e os meus pontos de vista, porque a minha estrutura é frágil. Se o outro abala essa insegurança, se me enfraquece, temos ódio. Mas devemos estar abertos a não saber quem somos, abertos ao maravilhamento, ao inesperado. Não é preciso controlar tudo. Essa é uma das grandes lições zen.
É essa necessidade de controlo que nos faz ter tanto medo da morte, o tema do seu livro ‘Vida e morte’?
Claro. Não falamos sobre a morte como se ela nos maculasse, como se fosse um fracasso e como se fosse contagiosa. Na minha casa, pensamos, a morte não vai entrar. Ora a morte é a vida. A eternidade somos nós, porque nos transformamo uns nos outros e carregamos em nós memórias muito antigas. Mas o que é interessante é que eu não repito tal qual a minha ancestralidade. Dizem que nós somos 5% de livre arbítrio, porque sem esses 5% tudo seria determinismo. Mas esses 5% podem fazer muita diferença. Embora eu seja uma continuidade dos meus bisavós, eu não tenho navios negreiros… (risos)
Ok, pergunta de leiga e dúvida existencialista: eu sou a soma dos que vieram antes de mim, mas os que vierem depois de mim nunca mais vão ser eu…
Mas são a sua continuidade. O seu eu não existe. Há um eu menininha, um eu adolescente, um eu bebé… Você não tem um eu fixo e permanente. Você tem vários níveis de consciêencia: a que gerencia os órgãos dos sentidos e outra que leva para a grande memória. E dá impressão que essa grande memória é uma coisa fixa e permanente. Não é, porque ela está a ser modificada por esse input permanente, pelos impulsos que entram. É como um computador.
Pertencemos todos à grande consciência?
Tal qual. Você tem um nome para poder viver em sociedade, Catarina, mas você não é esse nome, é uma das múltiplas manifestações do cosmos.
Então a morte na verdade não existe?
Não existe nem nascer nem morrer. E esse é o ensinamento superior. Claro que temos a nossa individualidade, mas essa individualidade não se separa do coletivo. Nós temos uma palavra que é interser. E é isso. A sua individualide vai interser com todos os outros, vivos e mortos. Mas a vida não se transforma em morte e a morte não se transforma em vida. A espiritualidade zen não é igual à de Kardec, por exemplo. Para o budismo, a cinza não volta a ser lenha. Pode ser misturada com outras matérias e dar origem a outras plantas e as plantas a lenha, mas não é a mesma lenha. Esta identidade fenomenológica a que você agora chama você, não vai voltar a ser você, não vai ter memórias desta vida. Mas vai ser outra manifestação de vida. Pense nas ondas do mar: tudo é água salgada. A vida de cada um é uma onda diferente, que tem começo, meio e fim. Mas vimos do mesmo mar. A onda termina mas ela nunca deixou de ser mar. Somos influenciados por outras ondas e criamos condições para a próxima onda. Portanto, a nossa vida influencia os outros mas cada um de nós é parte do grande mar. Cada um de nós é o todo manifesto. Por isso é que não estamos separados do equilíbrio cósmico. Todos somos co-responsáveis pelo que acontece.
É por isso que fala de karma?
Atenção que há vários tipos de karma. A pandemia, por exemplo, foi um karma coletivo. Claro que tivemos destinos diferentes porque somos todos diferentes, as causas e condições da sua vida não são iguais às minhas.
O karma é lógico ou moral?
Deixe-me pensar. O karma é uma lei inexorável e impessoal. A moral faz parte da lógica. Portanto, não, o karma não é necessariamente moral. E não há uma deidade à mistura.
O budismo não fala de Deus…
Porque não cabe… Não separamos a criatura da criação. Nós não temos a noção de Deus como uma criatura separada que nos julga de longe, falando: ‘Ah, viu, eu avisei!’ (risos). Aliás, se Deus existisse acho que teria mais o que fazer. Mas essa ideia de Deus foi criada como forma de controlo social, de criar regras para as pessoas viverem com mais harmonia. Claro que depois isso também deu origem a muitas guerras. Se eu não concordo com você, ou o mato ou o torno meu escravo. E é engraçado que esse pensamento ainda está muito presente hoje em dia, por exemplo, na cultura de cancelamento das redes sociais. Mas acredito que estamos a caminhar na direção do despertar da mente humana, e essa vai ser a grande transformação da sociedade, politica, economica e socialmente.
Acredita mesmo nisso? Não é o que vemos acontecer…
Acredito. E não sou a única. E não sou otimista, sou realista. Sim, há sempre retrocessos a história da Humanidade, mas a verdade é que já não somos queimadas na fogueira como bruxas, não é verdade? Sim, há quem ameace os outros. Vamos voltar atrás. Quem ameaça? Quem tem medo. Quem é fraco. Quem é verdadeiramente forte, não precisa de ameaçar ninguém. Por isso acredito no diálogo, na observação, na meditação. Porque é a nossa única possibilidade de salvação.