Estamos consigo, nós também não somos uma Gisele Bündchen, mas a verdade é que a modelo brasileira, exemplar de rara beleza se considerarmos a população humana na globalidade, é a que mais aparece em tudo o que é capa e interior de revista, cartazes de rua, televisão e ecrã de cinema, incluindo os sonhos dos homens e o nosso imaginário que, quer queiramos quer não, acaba por ser contaminado com essas imagens.
Sim, está bem, nós racionalizamos que a combinação genética das top models faz delas espécimes raros, mas, confesse, o facto de as Giseles da vida andarem aí expostas por todo o lado a proclamar a sua bela raridade não a perturba? Seja honesta, nem fica com uma réstia de perturbação? Foi isto que a jornalista francesa Caroline Rochet pensou ao escrever um livro em que clama revolta contra este estado de coisas. ‘Je ne Suis pas une Bombe… et Alors?’ (à letra: ‘Não sou uma bomba, e depois?, disponível na internet através da Amazon) é uma invectiva a todas as mulheres PFN (Pessoas de Físico Normal) para juntas combaterem a minoria opressora comandada pela Gisele e todas as mulheres com pernas de mais de metro e meio sem celulite.
Mulheres normais do mundo, uni-vos!
Se estas ‘bombas’ são uma raridade, porque é que nos atiram sistematicamente com os seus corpos esculturais mais os seus rostos simétricos e dentes perfeitos a torto e a direito? Elas representam um ideal de beleza, mas já se apreciaram coisas diferentes. As top models do século XV imortalizadas por Rubens eram bastante redondinhas… O que fariam essas mulheres hoje ao contemplar as dezenas de cartazes gigantescos cheios de corpos esculturais em lingerie, mais as centenas de anúncios a cremes anticelulite e terapias de emagrecimento? Cobriam-se de vergonha? “Em todas as épocas há a representação de um ideal de beleza, e este está sempre a mudar porque as sociedades também estão sempre em constante evolução”, lembra-nos Ana Sepúlveda, socióloga e especialista em estudos de mercado e análise de comunicação de marcas. A diferença é que, nas sociedades modernas, os mass media, a indústria da moda e as marcas têm capacidade para difundir essas imagens de uma forma global. “As mulheres redondas do Renascimento nunca poderiam voltar a estar na moda, porque hoje há uma preocupação forte com as questões de saúde. Aliás, se há uns anos se promovia a magreza por questões meramente estéticas, hoje em dia ser saudável é o mais importante.”
A espada numa mão e o rímel na outra
O certo é que tentar abstrair-se das imagens de mulheres esculturais e recusar o apelo glamouroso para que elas remetem, resistindo a achar-se menos atraente só porque o seu corpo não corresponde, não é fácil. Se virmos que o peso médio ideal dos manequins ronda os 52kg para uma altura de 1,78m, e a mulher média pesa por volta de 65kg e mede 1,65m, percebemos facilmente por que é que um estudo feito no Canadá assegura que o número de pessoas complexadas com o corpo mais que duplicou no último quarto do século XX, afectando hoje 56% das mulheres e 43% dos homens.
“A escravização das mulheres a um ideal com que se identificam e ao qual não conseguem corresponder é uma coisa negativa que gera frustração e no extremo pode levar a resultados patológicos, como as mulheres que ficam obcecadas com as cirurgias estéticas”, alerta Ana Sepúlveda.
Sejamos realistas, as imagens de corpos esculturais que vemos nos ditos anúncios são, muitas vezes, esculpidos não nos ginásios, mas no ecrã de um computador, assim como os rostos perfeitos sem rugas – apagadas com um clique – e o tom rosa das maçãs do rosto ou o brilho do olhar… tudo na dose perfeita. Eis que depois de horas de Photoshop [programa de computador] aparecem elas, qual deusas de Olimpo. A actriz Cameron Diaz, cuja beleza é tão admirada, não se cansa de dizer a quem queira ouvir que tem crises horrorosas de acne e que se não fossem os artistas da pós-produção a sua vida seria bem mais difícil.
Viva a diferença
A boa notícia é que estes ecos de revolta começam a ter efeitos nos próprios media, o que se vê nas contracampanhas de algumas marcas como a Dove e a Nivea, que mostram nos seus anúncios mulheres normais e que recusam o estereótipo da mulher artificial idealizada. “Isto acontece porque as marcas percebem que há também cada vez mais mulheres que não se revêem nessas imagens.
Começa a ser uma tendência e, felizmente, há cada vez uma quantidade maior de estereótipos diferentes e igualmente válidos. Os media reflectem isso mesmo na sua crescente segmentação. Há cada vez mais revistas e canais de televisão dirigidos a públicos-alvo com características específicas, nichos de mercado. A tendência será cada vez mais essa, e isso também é libertador”, diz Ana Sepúlveda.
Outra coisa fundamental segundo a socióloga é perceber que temos de nos educar para viver num mundo saturado de imagens publicitárias. “Temos de aprender a ler os media, quanto mais informados e educados formos, mais facilmente iremos conseguir diferenciar a nossa auto-estima pessoal das imagens dos anúncios.” O mundo tem evoluído tão rapidamente que a realidade para a qual fomos educadas, com os seus papéis sociais associados à mulher, já não corresponde àquele em que vivemos. “É por isso que é tão importante aprender a ler as imagens e ensinar as crianças a fazê-lo desde cedo, com iniciativas como o Programa Media Smart que a Associação Portuguesa de Anunciantes está a promover nas escolas.” Para que possam (eles e nós) dizer: “Não sou uma bomba, mas gosto de mim.”