Quando me caiu nas mãos este artigo também achei um bocado demais porque, juntamente com a almofadinha, já fazia de mim uma profissional da inveja, mas mais ninguém se quis assumir (cobardes!). Primeira lição: a inveja é o único pecado imperdoável. Ninguém se importa de ser uma gulosa do pior, preguiçosa em último grau ou mesmo viciada em sexo, mas invejosa é que não! Portanto deitei mãos à obra, não sem antes perguntar porque é que não podíamos começar pela Luxúria (parece que fica para o mês dos namorados).
Primeira paragem: liguei a uma amiga professora para perguntar se os maus alunos tinham inveja dos bons. “Vou contar-te a Parábola do Burro e do Cigano”, disse ela. “Numa aula há um bom aluno e dois maus alunos. Um dos maus alunos tem inveja do bom aluno e faz-lhe a vida negra. O outro mau aluno senta-se ao lado do bom aluno e aprende com ele. Um mês depois, o primeiro mau aluno continua mau aluno, e o segundo mau aluno já é bom aluno.”
Desligou antes que eu pudesse perguntar onde é que entravam o burro e o cigano, mas percebi que nada depende do pecado, tudo depende do que fazemos com ele. Primeira conclusão já estava.
Como, apesar de tudo, duvidava que me aceitassem um artigo com um parágrafo, fiz segunda paragem de peso, num dos nossos maiores filósofos. A propósito do livro ‘Portugal Hoje: O Medo de Existir”, José Gil afirmou ao ‘Público’: “Temos medo de experimentar porque temos medo do que vão dizer de nós. Partimos sempre do princípio de que o que vão dizer é negativo. Dificilmente alguém dirá: ‘Que bom o que tu fizeste’.” Não. Vão-nos decerto criticar. Isso cria logo um medo que nos paralisa.”
É difícil libertar-nos do olhar dos outros. “A sociedade portuguesa é uma sociedade suavemente paranoica. As pessoas estão demasiado conscientes de si próprias, o que é um horror, porque é paralisante.”
MAIS que um sentimento
Ou seja: não somos bons e também não deixamos que os outros o sejam. Lembrei-me de uma frase que um amigo meu está sempre a dizer: “Damos mais importância à língua da vizinha que à vontade secreta da nossa alma…”
“A sanção é o mecanismo da inveja”, explica José Gil. “Não agimos mas também não deixamos ninguém agir. O mecanismo da inveja tem a ver com práticas de magia, com o ‘mau-olhado’, com aquilo a que em psiquiatria se chama ‘transferência psicótica’. Cria-se um ambiente hostil à iniciativa.” Aguentem, que ainda há mais: é que se achava que a inveja era uma emoção pessoal que, quando muito, me coartava a mim e ao meu invejado, enganava-me: a teoria da conspiração vai mais longe. “A inveja em Portugal é mais do que um sentimento: é um sistema. E não é apenas individual: criam-se grupos de inveja, um ambiente de inveja. Numa empresa, não se permite que ninguém ultrapasse a linha da média baixa. Vivemos reconhecendo-
-nos como irmãos na desgraça. Uma pessoa sufoca a outra com esta energia.” Mas depois vamos para o estrangeiro e somos fantásticos, desenrascados, originais e criativos… Parece que só dentro de território nacional é que vivemos constrangidos.
Negação da alma portuguesa
Em crise e invejosos? É demais para um só país! Para saber como sair do sistema paralisante, fui bater à porta do psicólogo Vítor Rodrigues, especialista em Psicologia da Consciência, que estuda os estados de alma e o impacto que podem ter sobre as nossas ações.
“A inveja é quase uma negação da alma portuguesa”, começa por notar Vítor Rodrigues. “Desenvolvemos o hábito de recear o olhar alheio, algo muito inquisitorial. Neste país, tivemos uma Inquisição muito forte. Ninguém gosta de dar nas vistas, as pessoas fecham-se no seu pequeno núcleo.”
Dar nas vistas em Portugal ainda é malvisto. “Por acaso, neste momento estamos a importar a mentalidade tabloide, e criou-se a ideia oposta de que dar nas vistas em si é bom. Instituiu-se a busca da satisfação imediata, que também promove a inveja. Queremos tudo já, e sem esforço.”
José Gil diz que temos medo do olhar dos outros. Como é que o medo está ligado à inveja? “O ódio e o medo são da mesma família, são emoções aversivas. No medo, detesto alguma coisa e quero afastar-me. No ódio, detesto alguma coisa e quero aproximar-me para destruir. A inveja tem muito de ódio, porque o invejoso quer destruir ou prejudicar.”
Pergunta óbvia: a inveja pode trazer alguma coisa de bom? Resposta óbvia: não. Se trouxer, é porque estamos a usar a palavra errada. “A inveja é sempre tóxica, porque alimenta um estado de insatisfação permanente. É um sentimento duplamente perdedor: mau para quem sente, mau para quem recebe”, nota Vítor. “Ao passo que a admiração é um sentimento duplamente ganhador. A diferença entre as duas? Imagine que eu penso, ‘O sacana do Cristiano Ronaldo joga mesmo bem’ e tenho-lhe um pó desgraçado. Mas posso pensar ‘adorava jogar como ele’ e fazer tudo para que isso aconteça.” Ok, outra vez a Parábola do Burro e do Cigano, mais uma vez sem burro nem cigano.
Em vez de invejar posso admirar, é isso? “Sim. A inveja pode ter um pouco de admiração, mas tem muito mais de roubo, um desejo de se apropriar do que o outro tem, em vez de desenvolver em nós qualidades que nos ajudem a chegar lá. E na impotência do roubo surge um desejo de destruição. Não tenho o que o outro tem, por isso desejo que o outro não o tenha, se possível destruindo o outro ou aquilo que ele possui.”
‘Envie’, em francês, significa desejo… “Segundo os conceitos de espiritualidade oriental, desejar está no caminho inverso à felicidade. Quando desejo, projeto- -me para o futuro e assumo o estado de necessidade, algo que não tenho agora. Se tenho inveja, não sou feliz no presente. O truque é assumirmos o movimento interno mas vivê-lo agora.”
Ai não percebo. Explique lá melhor. “Se estou a trabalhar para que a sociedade avance, esse esforço já me satisfaz. É o sono do guerreiro, mesmo sem ter ainda vencido a batalha. Mas se vivo frustrado por não ter o que quero, não sou capaz de viver a felicidade no presente.”
Retrato do invejoso
Portanto, outra conclusão: a inveja é inimiga da felicidade. Mas somos bombardeados com coisas que temos de ter para sermos felizes… “Pois, o sistema económico empurra-nos para a inveja e para a competição. Por que é que isto nos torna infelizes? Sempre que me comparo com os outros, estou a procurar fontes de bem-estar no exterior e a afastar-me de mim próprio. A felicidade implica geralmente estados em que estou a fluir comigo próprio, a deixar-me ser.”
Qual é a diferença entre deixar-me ser quem sou e deixar-me querer ser gira e loira como a Letizia? “Se se lembrar dos momentos da sua vida em que se sentiu melhor, geralmente os outros quase não estavam na jogada, e a pessoa estava a viver-se a si própria. Estava a ver um pôr do sol, não a ver se alguém estava igualmente a ver o pôr do sol.”
Agora imaginemos que alguém me inveja e me quer destruir, como ameaçam todas as ciganas do mundo. Já José Gil falava daquilo que existe de mau-olhado num olhar invejoso… “Possivelmente, isso é 99% de superstição e 1% de verdade”, explica Vítor Rodrigues. “Algumas pessoas conseguem influenciar à distância o batimento cardíaco dos outros, por exemplo. Mas não precisamos de estudos parapsicológicos para percebermos que um invejoso nos pode de facto destruir. Numa empresa, é o que sabota o trabalho dos outros para impedir que subam mais do que ele.” Boas notícias: é possível mudar isto. Más notícias: dá trabalho, porque tem de ‘estudar’ o invejoso. “É preciso perceber como eles atuam e usar a inteligência e o bom senso para os desativar. Mas, acima de tudo, a defesa depende do grau de confiança que tiver em si própria.”