Apaixonei-me por ele quando fazia o ‘Fungagá da Bicharada’ e estava aos pés do José Barata Moura a cantar uma coisa sobre uma zebra. Eu tinha quatro anos, ele tinha 29, mas a diferença de idades não foi obstáculo a uma paixão que, embora platónica, dura até hoje (pelo menos do meu lado). E eu não sou excepção: Júlio Isidro é um caso de amor que se mantém há 55 anos entre ele e todos os seus muitíssimos admiradores. Foi o ídolo de todas as famílias durante anos, entrevistou estrelas de Hollywood e de Portugal, lançou quase todos os que ouvimos cantar por aí, esteve afastado e regressou com a elegância que os grandes senhores têm. Quando chego, ao fim da tarde, já ele apresentou dois programas em direto, e continua fresco e bem disposto. Conversamos durante duas horas. Vou-me embora com a sensação de ter cumprido um sonho de infância.
Que vai fazer depois desta entrevista?
Quando chegar a casa, vou continuar a escrever a minha biografia, que é o que estou a fazer neste momento.
Escrever uma biografia é tramado. Eu penso que me lembro de tudo e depois verifico que não me lembro de tudo. Uma biografia não é um relatório de contas… Às vezes acho que é a minha vida que me está a escrever a mim, mas vou escrevendo sem planos.
Também é assim na vida? Sem planos?
Sim. Nunca tive planos, eu sou mais de ter sonhos.
Por onde é que começou a biografia?
Comecei por mim em pequeno, mas vai ter muitos saltos voluntários.
E como é que era, em pequeno?
A minha mãe, quando me começou a ver na TV, no ‘Passeio dos Alegres’, dizia: ‘ninguém sabe, mas tu és exatamente o que eras’. Já era criativo, cheio de ideias, mas muito ‘domesticado’.
O seu pai fazia o quê?
O meu pai na prática fazia tudo aquilo para que não estava preparado. Era formado em histórico-filosóficas, um homem muito dotado, muito culto, mas era funcionário numa companhia de seguros. Acho que ele viveu sempre com essa frustração. Em casa, mergulhava no mundo dos livros e fugia ao mundo dos filhos. O meu lado comunicativo vem da minha mãe.
Quando começou a ver TV?
Com 13, ia ver televisão aos estúdios na Feira Popular. Mas nem fazia a mínima ideia do que era aquilo, para mim era um cinema em ponto pequeno. Aos 15 anos eu fazia rádio no liceu, uma coisa muito primária. Certo dia, fui fazer provas para o ‘Programa Juvenil’ na televisão. As provas eram ler um noticiário, ler um texto, ler em francês e em inglês, um improviso, uma reportagem, e contar uma anedota (risos). Acabei por ficar em primeiro lugar, mas disseram-me que não me aceitavam porque era muito feio. Ando há 55 anos a tentar viver com essa realidade.
Foi para casa chorar…
Pois fui. E a minha mãe, com um sentido pedagógico discutível, disse-me: ‘não deves chorar porque isso é uma ofensa aos teus pais, que te fizeram.’ Não foi grande ajuda. Mas passados dias chamaram-me, porque precisavam de alguém com jeito de mãos. Para isso parece que já se podia ser feio. E então durante 20 minutos eu falava sozinho enquanto construía aviões em direto. Era uma espécie de Maria de Lurdes Modesto do aeromodelismo. Pagavam-me 200 escudos.
O que é que fazia ao dinheiro?
Parte dava aos meus pais, e outra parte guardei para ir a Paris. Fui sozinho de comboio, em terceira classe, com emigrantes, logo a seguir ao Natal.
Não lhe passava pela cabeça ter outra profissão?
Claro que passava, até porque aos 21 anos casei e portanto tinha de ganhar a vida de forma permanente. Fui delegado de propaganda médica no segundo maior laboratório da Europa e simultaneamente tentava estudar engenharia, o que foi inútil porque geneticamente sou o que o meu pai era. Mas acho que vendia bem os medicamentos, aprendi a falar com doutores, e ainda sei montes de fórmulas químicas. E leio todas as bulas de medicamentos, e depois não os tomo. Sou daqueles hipocondríacos que têm como princípio ‘ter saúde não prenuncia nada de bom’. (risos)
Em 68 entrou para a Rádio, onde diz que se especializou na ‘técnica da metáfora’…
Sim, e a censura não era apenas ao nível político, exercia-se ao nível de uma moralidadezinha bacoca que envergonhava. Por exemplo, tínhamos pendurada no estúdio a lista dos discos proibidos. Então estava lá o ‘Eles comem tudo’ do Zeca Afonso, mas também ‘O Melro da Menina’ do conjunto de António Mafra (risos). Nos noticiários, não podíamos ler os telexes que vinham das agências, mas previamente censurados e ‘liberados’. Claro que não esperávamos por isso e arriscávamos. Havia coisas sinistras. Havia, por exemplo, uma notícia de que as ‘nossas tropas’ tinham tido cinco baixas. E eles mandavam substituir por ‘sem baixas’. Era a mentira institucionalizada.
Onde é que estava no 25 de Abril?
Antes do 25 de Abril estava em Inglaterra e na iminência de não voltar mais. Mas no dia 16 de Março, quando houve a primeira marcha sobre Lisboa, liguei para Portugal e disseram-me: ‘olha, acho que isto está a cair de maduro’. Então voltei, mesmo antes do 25 de Abril. Mas já tinha feito a tropa.
Conte lá a história das sanitas (risos)
Bem, eu estava na tropa e era recém-casado, a minha jovem esposa estava em casa dos meus pais, e de repente, numa sexta feira, soa um alerta de que as casas de banho estavam todas entupidas. O comandante da minha companhia era o Vasco Lourenço: bruto, enérgico, enorme, seco. E então fez-se um inquérito sobre as sanitas, e como ninguém se acusou, decretou-se: não vai ninguém de fim de semana. Bati à porta do Vasco Lourenço. ‘Venho só dizer que faço anos de casado e acho que não é justo ter de prescindir disso só porque alguém fez porcaria’. Ele disse à bruta: ‘Vá-se embora para casa. Volte na segunda feira’. E eu fiquei-lhe grato toda a vida.
E agora conte-me sobre o ‘Fungagá’…
Bem, o ‘Fungagá’ foi uma ideia minha de um programa para crianças que divulgasse as características de um animal, que também tinha uma profissão. Havia música, era uma coisa muito alegre, muito divertida.
Também fez o ‘Febre de Sábado de Manhã’, na rádio…
A ideia era levar o programa para a rua, com maluqueiras a que o público correspondia. Uma vez, a Dina foi lá apresentar um disco chamado ‘Pássaro Doido’ e eu desafiei as pessoas a aparecerem vestidas de ‘aves raras’. E as pessoas apareciam no Nimas naquela figura! Tive lá as ‘Frenéticas’, um grupo brasileiro, e disse – Tragam-me feijoada à brasileira… e no final do programa havia dezenas de feijoadas ali!
Sempre fez ‘pesos pesados’ e sempre em direto. Como é que aguentava?
Sim, o ‘Passeio dos Alegres’ eram 4 horas e meia seguidas e eu coordenava tudo! Mas nunca fui de excessos de energia. Como dizia o Mitterrand, sou ‘la force tranquille’, a força tranquila. E como não era de exuberâncias e pulos, aguentava aquilo. Mas claro que em direto há sempre desastres. Logo ao princípio, estava eu a construir uma prateleira muito gira, e quando fui pregá-la na parede, a parede ruiu. E o programa acabou comigo literalmente a aguentar a casa… (risos)
Foi o responsável pelo lançamento de dezenas de artistas. Estava consciente da importância que tinha na vida dessas pessoas?
Tinha absoluta noção disso. Mas sempre achei que a televisão e a rádio não eram minhas, e se eu tinha este poder, tinha a obrigação de o exercer em serviço público. Como dizia Bill Clinton, o importante é o poder do exemplo, não o exemplo do poder. Gosto de dar o exemplo. E orgulho-me de todos os que lancei, menos daqueles que têm falta de memória e apagaram esse facto dos seus currículos. Chegaram a pedir-me desculpa por não mencionarem o meu nome: ‘É que o Júlio na altura não estava na berra…’
Deviam persegui-lo…
Era perseguido na rua, telefonavam-me, deixavam-me bilhetes por baixo da porta, deixavam-me cassetes na caixa do correio. E eu lia e ouvia tudo. O Carlos Paião estreou-se no meu programa, o Rui Veloso, os Heróis do Mar, tantos. Tenho o maior orgulho neles mas considero que fiz apenas a minha obrigação, porque o meio não me pertence, pertence ao público.
Hoje serve para quê, a televisão?
É a pergunta mais difícil que me pode pôr, porque para mim a televisão tem uma função meramente utilitária. Em relação à informação, tenho enormes reservas, porque está transformada em ‘entertainment’ e muito marcada pela obsessão terrível das audiências. No entretenimento, tenho o maior desgosto. Gosto de entretenimento português feito para os portugueses, e hoje é tudo importado, massificado, plastificado. Eu não me preocupo com a tirania das audiências, mas preocupo-me com a tirania da qualidade. E acho que a qualidade faz as audiências. Hoje, fazer TV é olhar para os números numa folha de Excel. Mas esta administração está a fazer um excelente trabalho para voltar ao caminho da qualidade. E é preciso dizer que me fizeram uma coisa fantástica: no dia dos meus anos, prepararam-me uma pequena festa-surpresa com a administração em peso a dar-me os parabéns. Fiquei muito comovido. Jamais esquecerei esse gesto.
Entrevistou milhares de ‘estrelas’. Quais foram as que mais brilharam?
Não esqueço o Dustin Hoffman, que encostou o nariz dele ao meu e foi uma paródia desgraçada. Com a Meryl Streep, parámos a entrevista para beber um chá das cinco, a Susan Sarandon está a falar comigo ao meu lado e de repente diz ‘ai estou muito cansada’ e põe as pernas nos meus joe-
lhos, e depois diz ‘não ligue, sou o sex symbol mais velho de Hollywood’. Era uma brasa! Em Portugal, entrevistei o poeta José Gomes Ferreira, era eu muito miúdo, que me marcou imenso, e fiz a última grande entrevista à Maria Barroso, muito carinhosa, um extraordinário balanço de vida. Entrevistei o Vinícius de Moraes, a Oprah Winfrey a correr, falei com o Woody Allen. Guardo memórias extraordinárias.
E alguma vez ficou desapontado?
Claro que sim. Os meus maiores desapontamentos foram o Harrison Ford, muito arrogante e deselegante, e o Mel Gibson, um malcriado.
É verdade que é um romântico?
A minha mulher diz que sim.
Como é que se conheceram?
A Sandra entrou para a Telecine como assistente de produção e trabalhámos imenso tempo juntos. No dia em que saí, ela vem ter comigo e diz-me: ‘Gostava muito de continuar a trabalhar consigo.’ Aceitei e montei um pequeno escritório numa casa de porteira só com uma assoalhada, e só com uma funcionária, que era ela. Almoçávamos muitas vezes juntos. Depois, a atividade foi crescendo, e a cumplicidade também. Um dia pedi-a em casamento. Esqueci o meu bilhete de identidade, porque sou 27 anos mais velho.
O que é mais importante numa relação?
Apanhando boleia da vossa revista, acho que é preciso acima de tudo ser-se Activo (risos). Nunca banalizar coisa nenhuma, nunca deixar cair a bola no chão. O que mais valorizo são os nossos jantares a falar das mais variadas coisas, a rirmos, a dizermos mal das cúpulas deste país, e também estarmos em divergência às vezes.
Não o deixaram casar a 25 de abril…
Pois não deixaram, porque era feriado. Casámos a 24, vamos fazer 18 anos de casados, ela continua a trabalhar comigo no ‘Inesquecível’, no arquivo, que dá imenso trabalho, e continuamos a ter uma relação de grande cumplicidade.
Qual é a diferença entre ter uma filha aos 20 anos e depois duas aos 50?
Eu tenho uma dívida impagável para com a minha filha mais velha, que é a disponibilidade que não lhe dei. Temos uma relação fantástica, mas ela diz-me: ‘Não me esqueço dos domingos em que me prometeu que me vinha buscar, e eu ficava na varanda de lágrimas nos olhos até o pai telefonar a dizer que não podia vir’. E isto parte-me o coração. Agora, com a Mariana e a Francisca, embora eu continue a trabalhar, se quiser mesmo estar com elas, estou.
Elas veem-no na TV?
Não, pela simples razão de que veem muito pouca televisão. Veem nos tablets, no computador, veem gravado, mas nunca no momento real. É tudo selecionado. A TV para jovens é uma coisa que já acabou e as generalistas vão acabar um dia destes. Mas há uma coisa negativa: as pessoas fecham-se muito nos seus gostos e nas suas preferências. Eu tenho muita pena que não exista hoje televisão para a família. Porque dantes, a televisão unia as famílias. Hoje, a família desmembrou-se através dos media. Eu vejo isso por mim próprio: lá em casa, cada um vê uma coisa diferente. Eu tento que as minhas filhas tenham um tipo de informação mais abrangente, mas em muitas pessoas mais novas, isso não acontece. E há uma enorme arrogância na ignorância. Para mim, a tecnologia é só uma ferramenta.
Já se Googlou?
Já. É uma infinidade! Mas gostei do que li e deixou-me tranquilo porque dá impressão de que as pessoas gostam de mim. Nunca li nada de mau.