“Dus kurpu, un corson”. Esta expressão do crioulo guineense, que significa “dois corpos, um coração”, reflete na perfeição a essência do cantor Mário Marta.
Nascido na Guiné-Bissau, filho de um guineense e de uma cabo-verdiana, aos quatro anos mudou-se para a ilha de São Vicente, em Cabo Verde, onde passaria toda a infância e a adolescência, bem como o início da vida adulta. Uma mistura e vivências que se refletem na forma como o artista se expressa musicalmente. “Vou buscar inspirações na música da Guiné – àquele sentimento profundo – e na música de Cabo Verde, que é algo que flui naturalmente, porque cresci com ela.”
E esse contacto era muito mais próximo do que se pode imaginar. Mário faz parte de uma família de conceituados artistas africanos como, por exemplo, Tonecas Marta, Eneida Marta e Djodje, um dos mais aclamados artistas do Afropop da atualidade. Tanto na Guiné como em Cabo Verde, as tocatinas em casa às sextas ou aos sábados eram habituais, e desde cedo foi incentivado pelos parentes a cantar nessas noites com os mais velhos, nas quais Tito Paris e Cesária Évora, entre outros, eram presenças habituais.
“Eu sempre me senti cantor, mas lembro-me do momento exato em que soube que queria sê-lo,” conta-nos. “Aconteceu numas férias na Guiné, na casa do meu avô. Eu estava a cantar na varanda, com os amigos do meu avô lá a comer chouriço assado e feijoada, e lembro-me de ter dito: ‘avô, um dia vais ver-me a cantar num palco.”
Jornada Espiritual
Em adulto, depois de viver dois anos na Guiné-Bissau e de uma passagem por Angola, Mário Marta mudou-se para Portugal e sentiu a necessidade de começar a cantar. Iniciou o seu percurso na música gospel, tendo pertencido ao coro Shout!, formado por Sara Tavares e Dale Chappell, entre 1998 e 2016.
“Na altura, eu não ligava nada às crenças. Tudo o que eu queria era cantar e sentir-me integrado, mas a mensagem acabou por tomar conta de mim. É algo muito forte. Os Shout! e a música cristã mudaram-me muito na forma de cantar, projetar a voz e de sentir a música,” revela.
Mais tarde, fez parte do grupo de soul português SDS (Sons da Soul). Um projeto que existiu um pouco antes do surgimento da cena musical da Nova Lisboa e da popularidade da musicalidade de inspiração africana em Portugal. “Quando aparecemos, foi uma novidade. Éramos quatro negros a cantar. Durante dois anos, sentimos que o mercado foi ganhando mais abertura até que a música africana explodiu e deu-se uma assimilação de culturas. Fico emocionado quando penso no panorama atual.”
Regresso às Origens
As estrelas alinharam-se para que Mário decidisse lançar a carreira a solo, mais virada para as suas raizes. Nesse sentido, assinalou o 10º aniversário da Broda Music, editora e produtora discográfica fundada pelo seu primo Djodje, da qual faz parte, com o lançamento de dois singles: “Kriol”, uma coladeira que presta homenagem à diáspora cabo-verdiana, e “Aguenta”, um funaná que conta com a participação de Lura (veja a entrevista sobre este tema no vídeo).
O videoclipe de “Aguenta” já soma mais de um milhão de visualizações no YouTube, e esta colaboração de sucesso representa uma espécie de fechar de ciclo. Os dois artistas são amigos de longa data e fãs um do outro, mas nunca tinha surgido a oportunidade de trabalharem juntos. Além do mais, sem ter consciência disso, foi a diva cabo-verdiana que inspirou Mário a voltar a cantar na sua língua materna. “Quando eu ouvi o primeiro álbum cantado em crioulo da Lura, houve uma tomada de consciência. Aquilo mexeu muito comigo e recomecei a cantar em crioulo,” confessa.
Após um total de 21 anos a dividir o palco com outros artistas, Mário Marta prepara o lançamento do seu primeiro álbum para o segundo trimestre de 2020. Em tempos de pandemia, a sua equipa já começa a pensar em alternativas para contornar os constrangimentos que possam surgir, mas fica uma promessa: quando o disco chegar, não vão faltar os ritmos tradicionais da terra onde cresceu, como o funaná, a coladeira, o batuco e a morna – e os fãs mal podem esperar!