Tenho algum interesse por casos de crimes reais. Gosto de assistir aos documentários sobre serial killers, conhecer os detalhes das investigações, mergulhar nas análises sobre as personalidades dos assassinos. Primeiro: Já estou muito bem resolvida sobre ter estes gostos – não sou diferente, nem violenta, nem tenho desejos secretos de cometer crimes. Inclusive não sou fã de ver fotos das cenas do crime só pelo sangue, e não gosto de filmes violentos nem nada do tipo. Mas isto tudo é para dizer que, depois de assistir a muitos materiais sobre o assunto, pesquisar e produzir conteúdos como jornalista (aqui, e aqui), cheguei à conclusão de que o machismo é parte muito importante na construção destes criminosos – e que muitos assassinatos poderiam ser evitados.
Em 1992 a atriz brasileira Daniella Perez, de 22 anos, foi morta por um colega de trabalho, o ator Guilherme de Pádua, que interpretava o par romântico da jovem na principal novela da Globo da época. Quando Guilherme foi preso, justificou que a atriz, “aproveitando-se das normais brincadeiras entre atores, passou a assediá-lo de todas as formas possíveis para uma mulher”. Daniella era casada, e os depoimentos de outros atores que trabalhavam com a dupla comprovam que a atriz nunca assediou Guilherme. Mas e se Daniella fosse solteira? E se Daniella estivesse a assediar Guilherme de Pádua? Isso justifica 18 golpes perfurantes no peito e pescoço?
A história é contada no episódio 9 do podcast “Crime sob o Holofote” (acima), para quem quiser conhecer os detalhes da investigação. Guilherme de Pádua já está solto depois de cerca de 6 anos na prisão. Agora é pastor evangélico e em 2018 deu uma entrevista ao jornalista Marcelo Rezende na qual voltou a justificar que a morte de Daniella foi o fim trágico de uma disputa entre duas mulheres. Guilherme, que era casado na época, disse que a mulher não acreditava que era Daniella quem o assediava, e que pediu para ouvir, escondida, uma conversa entre os dois atores. Diante da cena, Guilherme de Pádua diz: “Eu de certa forma, por dentro, o que é triste de pensar, já me sentia assim: ‘Ah tá vendo? Você me desvalorizou mas olha!’ Já existia uma vaidadezinha. Lá no fundinho eu já era o ‘bom do skate’, já estava contando vantagem”.
Segundo o advogado da família de Daniella Perez, Artur Lavigne, a história contada por Guilherme de Pádua tenta transformar o assassinato da atriz num crime “passional”, resultado de uma ira da mulher do ator, um momento de ciúmes que correu mal. É a justificativa clássica para femicídios há décadas – um homem apaixonado mata a mulher por ciúmes, depois de saber de uma traição ou depois de ser rejeitado.
Legítima defesa da honra
“Quem ama não mata”. A frase foi tema das manifestações feministas no Brasil no início dos anos 1980, depois de Raul Fernando do Amaral Street, ou “Doca Street”, ter saído livre do tribunal. Apenas 3 anos antes tinha assassinado a namorada, a socialite Ângela Diniz, na Praia dos Ossos, no Rio de Janeiro. Naquela noite Ângela terá terminado a relação com o namorado.
A história é contada ao pormenor no podcast “Praia dos Ossos”. Em 1979 Doca Street foi defendido por um conhecido advogado, Evandro Lins e Silva, que usou a tese de “legítima defesa da honra” para justificar o crime. Segundo a defesa, o homem matou a namorada depois dos comportamentos moralmente incorretos dela, ou seja, a culpa foi da vítima. O juri comprou a teoria e condenou Doca a um ano e meio de prisão, mas como já tinha cumprido um terço da pena, saiu em liberdade. A pressão foi tanta que Doca Street foi julgado uma segunda vez e condenado a 15 anos de prisão. Depois de solto lançou um livro chamado “Mea Culpa”, no qual dá a sua versão do crime e admite arrependimento.
Sinal dos tempos?
As justificativas para os assassinatos soam quase tão brutais quanto a violência dos crimes. É difícil de aceitar que há 40 anos estávamos a ouvir defesas tão absurdas em tribunal e a permitir que um grupo de homens decidisse uma punição justa para outro homem com base em acusações baixas a uma mulher. E que há 30 anos um homem ainda acreditava que poderia justificar com assédio e ciúmes uma agressão mortal a uma mulher. São discursos que reafirmam e validam comportamentos violentos contra mulheres, pelo simples facto de serem mulheres.
Mas não precisamos ir tão longe na história: Em 2017 o parecer do juiz Joaquim Neto de Moura sobre um caso de violência doméstica reduzia a pena dos agressores por causa de uma atenuante: “A conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem.” Em 2019 o magistrado foi afastado dos casos de violência doméstica e trocou de nome.
No final de 2020 um caso de violação no Brasil terminou com o acusado sendo absolvido por não ser possível comprovar que o ato não foi consentido. A decisão foi tomada depois de o advogado de André de Camargo Aranha dizer, durante o julgamento, que a vítima tinha fotografias em poses “ginecológicas” e que “jamais teria uma filha do nível” da jovem. A tese foi apelidada pela imprensa brasileira de “violação culposa”, quando o violador não tem intenção de cometer o ato criminoso.
Casos individuais que refletem uma normalização de justificativas que se baseiam em pensamentos machistas. Nos tempos atuais, devia ser motivo de vergonha para um juíz ou um advogado usar frases como estas em ambiente profissional e formal. Não existe matar por ciúmes ou defesa da honra. Vítima é vítima e tem que ser tratada como tal.
Ps. Em 2020 foram assassinadas 30 mulheres em Portugal, sendo que 16 delas estavam em relações de intimidade. “Quem ama não mata”.