Já os vimos nas salas de espera dos consultórios, no supermercado, no parque infantil. São as crianças que dão pontapés aos pais enquanto estes se limitam a sorrir e a dizer ‘isso não se faz…’, as que fazem birras monumentais porque querem o jogo de consola que a mãe acabará por comprar, depois de uma insuportável meia hora de gritaria. A sua existência parece consagrada a fazer exigências, a que os pais cedem para que não conheçam a frustração.
Javier Urra, 41 anos, é psicólogo forense do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal de Menores em Madrid, assessor da UNICEF e terapeuta especializado em jovens agressivos. Escreveu ‘O Pequeno Ditador – Da Criança Mimada ao Adolescente Agressivo’ (Esfera dos Livros), que vai na 5.ª edição portuguesa e que pôs 180 mil espanhóis a ler. “Em Espanha, em 2005, houve sete mil denúncias de pais contra os seus filhos de 14 a 18 anos, porque existiam agressões (verbais e físicas). O ano passado, quando o livro saiu em Espanha, eram sete mil..só em Setembro”, revela o autor. Mas Portugal o fenómeno também aumenta. A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) divulgou que, em 2006, o número de pais vítimas de violência por parte dos filhos cresceu 38,5%, passando de 252 queixas para 349. Os agressores têm, normalmente, entre 18 e 45 anos, mas a APAV salienta que são cada vez mais os adolescentes que batem nos pais.
“Não tenho tempo para o meu filho”
No consultório da pedopsiquiatra Ana Vasconcelos aparecem pais preocupados com o temperamento conflituoso dos filhos. “Alguns dizem: ‘O meu filho tem uma personalidade muito forte.’ Digo-lhes que é o contrário: o filho tem é uma personalidade rígida, mas fraca, porque não tem maleabilidade.” São crianças que tiveram modelos de educação incoerentes – quando não se querem chatear, os pais dão-lhes o que eles pedem e, no dia seguinte, zangam-se e castigam. “Outras, têm pais um pouco tiranos, que, entretanto, se separaram e os miúdos, por agilidade emocional, identificam–se mais com um dos progenitores, opondo-se ao outro. Filhos de casais em que não há diálogo vão imitar essa estratégia. Muitos pais confessam que desautorizam o marido ou a mulher em frente aos filhos.” O grande stresse em que os adultos vivem – sobretudo as mulheres, que têm de ser trabalhadoras, donas de casa e educadoras – e o poder que o mundo dos objectos tem na vida da criança também não ajudam os pais a tomar as melhores decisões educativas.
“São crianças com medo de viver”
Javier Urra traça o perfil destas crianças-rei. “Sofrem lá no fundo, mas, como todo o ditador que não se sente querido pelo povo, ganham o gosto pelo poder. É uma estratégia de sobrevivência que aprendem. A proporção é de duas raparigas agressoras por cada oito rapazes. O número aumentou um pouco entre as raparigas e as que são problemáticas são muito competitivas.” Geralmente, são filhos únicos ou os irmãos mais novos com grande diferença de idade dos mais velhos, que, entretanto, saíram de casa. Nunca souberam o significado de cumprir regras ou de seguir rotinas, como respeitar horas de sono e alimentação. Querem ver os seus desejos satisfeitos de imediato porque desenvolveram uma baixa tolerância à frustração. Têm uma auto-estima elevada, mas baseada na imagem distorcida que têm de si próprios. Ana Vasconcelos acrescenta: “São crianças que têm medo de viver. São ditadores em comportamento, mas sofrem muito porque não sabem viver socialmente.”
“Não quero que lhe falte nada”
Há 50 anos, as famílias tinham quatro ou cinco filhos, que começavam a trabalhar na infância para ajudar o orçamento familiar. Hoje, há um ou dois por agregado. Os empregos tomam aos pais a maior parte do dia. A culpa na consciência expia-se fechando os olhos a limites e sanções, para não haver atrito no pouco tempo que passam juntos e comprando tudo o que os filhos desejam. “Mais do que quererem bem aos filhos, há pais que os ‘seduzem’, comprando afecto com presentes, dizendo-lhes ‘será como quiseres’, ‘não te quero traumatizar’, ‘não te digo que não’. Acontece mais nas classes média alta e alta”, diz Javier Urra. “Mas não se pode dar tudo às crianças. Elas têm que conhecer o que é a austeridade e saber que se chega ao fim do mês sem dinheiro.”
Pais educados à moda antiga não querem repetir o modelo educativo que receberam. Desejam ser os companheiros dos filhos, quase como um amigo da mesma idade. Um erro perigoso, porque as crianças precisam de pais que protejam; melhores amigos arranjam na escola. A culpa, aponta Urras, “é desta sociedade que sobrevaloriza a juventude”. Porém, no geral, o psicólogo pensa que o saldo é positivo. “Hoje, os pais põem-se em questão, estudam, lêem, fazem perguntas. São carinhosos e dialogantes. Não trocava esta fase pela etapa anterior. Mas estamos a pecar por excesso de permissividade.”
“A culpa é minha”
Quando as relações entre pais e filhos se deterioram ao ponto dos adoráveis ditadorezinhos passarem a abusadores domésticos, os casos vão parar à esquadra de polícia. “A maior parte dos pais retiram a denúncia”, diz Urras. “Sentem-se mal, crêem que os filhos se vão pôr contra eles. Sentem que fracassaram, sobretudo a mãe.”
Os pais que pedem ajuda a Ana Vasconcelos vêm à beira de um ataque de nervos. “Não são os filhos que levam os pais à depressão. É toda a situação que os leva a um esgotamento e a um sentimento de impotência tal que entram em quadros depressivos. Hoje, os pais sentem-se muito inseguros, têm muito medo que os filhos os ponham em causa. É normal que o miúdo fique zangado porque foi posto de castigo, mas faz parte que os pais saibam aguentar isso. A culpabilização é uma chatice: quando os pais se sentem culpados por causa de uma coisa que fizeram, no seu íntimo o filho já está a ser seu inimigo porque lhe causou esse sentimento. E quanto mais lutarem com o problema, mais podem ficar sem capacidade de ajudá-lo, porque sentem que este os estorva mais do que lhes dá prazer.”
Sinais de alarme
Será que na adolescência não é já tarde demais para se conseguirem mudanças ? “Pode-se sempre melhorar a conduta do jovem. Só é preciso que os pais e os jovens o entendam, assumam e queiram fazê-lo”, diz Javier Urras. Ana Vasconcelos salienta que não se age da mesma maneira com um miúdo de sete anos e com um adolescente. “Se uma criança tem um historial de atitudes de oposição, a partir dos 12 ou 13 anos começará a ter comportamentos potencialmente graves. Eles vão achando estratégias de sobrevivência cada vez mais potentes. É por isso que aos 11 anos não batem na mãe e aos 16 já o fazem.”
Estratégias para educar sem dramas
Mesmo quando começam por ceder demasiado, uma mudança de atitudes por parte dos pais é sempre bem-vinda. “As crianças, geralmente, apreciam-na”, diz Ana Vasconcelos. Muito amor e limites firmes são a receita.
Comece cedo: Javier Urra aconselha em ‘O Pequeno Ditador’ que os pais dêem, desde muito cedo, a noção de responsabilidade. “Entre um e dois anos, não deve permitir-se que parta coisas deliberadamente ou que as suje de propósito. Aos dois anos espera-se que se esforce por ajudar a arrumar os seus brinquedos. Aos três anos dever-lhe-iam ser adjudicadas tarefas de pequena importância, como ajudar a pôr a mesa ou esvaziar o cesto dos papéis.”
Dê-lhes rotinas: “É bom utilizar as mesmas palavras e os mesmos rituais para a deitar, para a levantar, para o banho e para a comida e fazer isso tudo na mesma ordem e na mesma hora, porque tudo isto configura um mundo mais previsível, ordenado e simples para a criança”, escreve ainda o psicólogo.
Jamais ceda a uma birra: Ou todo o trabalho que teve até aí cairá por terra à primeira cedência, como escreve Javier Urra. “Face à primeira birra tem de responder com calma e absoluta determinação. Tem de falar com a criança, não lhe bater, mas ser inflexível. Explicar-lhe a razão pela qual não pode satisfazer o seu desejo. Ocasionalmente, ignorá-la pode ser eficaz a longo prazo.”
Elogie e dê reforços positivos: Ana Vasconcelos enfatiza o poder da recompensa. “Digo muitas vezes aos pais para arranjarem um relógio, e se o filho for, por exemplo, tomar banho a horas, recebe uma semanada maior. Muitos pais pensam ‘não fazes mais do que o teu dever’ em vez de elogiarem pequenas coisas como o jovem ter posto a mesa para jantar quando eles já chegaram a casa cansados.” Javier Urra define ainda que, primeiro, podem dar-se pequenas recompensas, passando depois a elogios que reforcem a auto-estima e, mais tarde, permitir-lhe fazer as actividades de que mais gosta.
Use sanções sempre que precisar: “A sanção é parte da educação”, diz o psicólogo. E há regras para fazer uso dela. “As sanções devem ser poucas, claras, imediatas, contundentes” e inflexíveis. Os pais devem estar de comum acordo e jamais se desautorizarem. A voz deve ser calma e baixa. Pode ser necessário usar um tempo de afastamento da criança dos pais. Não ameace constantemente que a põe de castigo; a sanção perde a força e raramente chega a ser cumprida.
Não perca a cabeça: As bofetadas e palmadas não são pedagógicas, defende Urra. Podem mesmo ser humilhantes e traumatizantes e, se forem demasiado comuns, só conseguirão que a criança se habitue sem que mude de comportamento.
Eduque-a para a bondade: Mais do que regras, é preciso dar-lhes valores e formação cívica, “ensiná-las a serem boas pessoas”, como diz Javier Urra. E dar o exemplo, sempre.