Se ser ou não ser bonita ainda é um tabu, quando se fala de crianças é-o ainda mais: toda a gente recusa admitir que o facto de ter um filho bonito ou feio tem alguma influência no amor materno. Qualquer mãe assinaria por baixo. Mas o que está em causa não é o que sentem os pais. O que sentem as crianças?
“Até aos 5 anos, vivi alegremente na ignorância de como a beleza – ou a falta dela – iria afetar a minha vida”, relata a cronista Shona Sibari no jornal ‘Daily Mail’. “Claro que, assim que entrei para a escola, percebi que não era bonita como as outras meninas.” Ser filha de duas pessoas lindas também não ajudou, e a família não era grande apoiante da autoestima infantil. “Uma tia costumava dizer: ‘Vê-se logo que não herdaste a beleza da tua mãe. Espero que ao menos tenhas uma personalidade forte’.”
35 anos, um marido, uma carreira e quatro filhos depois, pouco mudou: “Aprendi a não me importar tanto, mas sei que ser ‘diferente’ (outra palavra para feia) foi um entrave em muitas áreas da minha vida.”
A experiência de Shona é comum a muitas crianças, com uma agravante: geralmente, não é algo de que se fale. Os pais não falam disto para não entristecer a criança (e a eles próprios). As crianças, para não entristecer os pais (e porque, de facto, não sentem isto como algo de que se fale). E, no entanto, crescer feio pode ser um drama com consequências para o resto da vida.
Uma criança pequena sabe que é feia…
“A partir do pré-escolar, uma criança com 4, 5 anos começa a ter noção de como é”, explica Sónia Oliveira, psicóloga do Nupe (Núcleo de Psicologia do Estoril) e co-autora do livro ‘Sou como Sou e Gosto’. “Conseguem descrever-se com imagens muito concretas: sou alta, magra, gorda, tenho olhos castanhos. Apercebem-se das diferenças: e ser bonita ou feia é uma diferença. Só mais tarde é que conseguem descrever-se com qualidades abstratas: sou simpática, sou teimosa…”
Ou seja: a noção de que se é bonita ou feia vem antes das noções potencialmente salvadoras de que também se é outras coisas talvez mais valiosas. E, curioso, a noção de beleza pode ser teoricamente subjetiva mas tem-se mantido bastante estável nos últimos séculos, e não é qualquer coisa que lhes seja passada pelos pais. Que o diga Leonor, 7 anos, que à pergunta ‘O que é ser bonita?’ respondeu, sem sequer hesitar um pouco, ‘Ser bonita é ser loura’.
“Uma vez ela disse-me que as meninas escuras eram feias”, conta a mãe de Leonor. “Fiquei chocada porque não é nada disso que eu lhe passo. Levei-a à Internet e mostrei-lhe fotografias da Naomi Campbell e da Tyra Banks. “E então”, perguntei, “são feias?” Ela encolheu os ombros e continuou na dela. Acho que as mais pequenas pensam assim porque todas as princesas são louras. Há a Mulan e a Princesa Sapo, mas as preferidas continuam a Rapunzel e a Bela Adormecida. Continuo a achar que, no fundo, é uma questão de diferença.”
Sónia Oliveira concorda: “Os padrões de beleza são-lhes passados intuitivamente, desde muito cedo, através das bonecas, da televisão e dos filmes. A criança não se sente bonita ou feia porque os pais lho dizem, sente porque se compara com outras crianças ou com imagens tradicionalmente aceites de beleza.” Além disso, muitas vezes feio é equiparado com mau: ninguém quer ser as irmãs da Cinderela…
Há qualidades mais importantes
Se ser feio é sentido pela criança como ser diferente – e para uma criança todo o tipo de diferença é uma ferida – como podemos protegê-la? Não, a ideia não é deixar de lhes contar histórias de fadas com princesas louras e príncipes encantados. “O sentimento está lá, os pais podem é habituá-la a pensar que há outras áreas importantes na nossa vida que não a beleza”, nota Sónia Oliveira.
Mas como é que uma criança tem armas para se valorizar, se a autoestima já é uma ginástica tão difícil para um adulto? “Não é fácil, por isso mesmo é que deve ser um trabalho feito desde pequenino. Ela pode ser ótima a desenhar, ser muito boa num jogo, ser muito meiga. E isso tem de ser dito. O importante é levá–los a aceitar essas diferenças como aquilo que os torna únicos. Claro que isto não se consegue num dia.”
Problema: temos imensa dificuldade em elogiar seja o que for. “A expressão ‘elogiar estraga’ tem causado ela própria bastantes estragos”, nota a psicóloga. “O que fazemos é deixar andar e depois, se a criança fizer alguma coisa mal, criticamos. Ora, ao contrário do que se pensa, isso nunca deu bons resultados, pelo contrário, estas críticas destroem a autoestima.”
Mas isso é muito português, estamos sempre a criticar o que está mal. Quantas pessoas elogiam um colega de trabalho? “Muito poucas. E também aceitamos muito mal que as pessoas se autoelogiem. Mas isso é-nos passado desde pequeninos.”
A nossa autoestima vem das avaliações que vamos fazendo em determinadas áreas da nossa vida e daquilo que achamos que os outros pensam sobre nós. Mas também se baseia na importância que aquela área tem para mim. “Se achar que a beleza não tem assim tanta importância, provavelmente até me vou sair melhor do que muitas outras.”
Claro que às vezes uma mudança é bem-vinda: substituir os óculos por lentes de contacto, ajudá-los a comprar roupa gira… Se podemos ajudá-los, porque não? “Isto não tem a ver com a ditadura da imagem, tem a ver com ajudar a criança a sentir-se melhor. Mas depois há sempre aquilo que não podemos mudar, e isso é que temos de integrar na natureza da criança, para que ela se aceite.”
“Então tu andas com aquela feiosa…”
Na adolescência, por muita autoestima que se tenha, a falta de beleza pode ser ainda maior fonte de sofrimento: principalmente se se é rapariga. “Os rapazes não ligam nada ao facto de um deles ser feio”, explica Bernardo, 17 anos. “Desde que seja simpático e bem-disposto, é enturmado. As raparigas, além de terem a pressão umas das outras, também têm a pressão dos rapazes, que dizem a quem tem uma namorada feia ou gorda: ‘Andas com essa feiosa? Quando a beijas fechas os olhos?’ Mesmo que se goste imenso da rapariga, é difícil resistir a estas bocas.”
Claro que as menos bonitas compensam: “As minhas amigas menos bonitas são todas supersimpáticas, boas alunas e acabam por enturmar-se por causa disso. São amigas, mas nunca serão namoradas.
Mas, ao que parece, não são só as raparigas que sofrem. Uma adolescência traumática foi o que levou o argentino Gonzalo Otalora a escrever um livro polémico. Em ‘Feo!’ Gonzalo eleva a fealdade a uma arma e batalha contra a discriminação dos feios, defendendo, entre outras medidas, que os bonitos deviam pagar imposto. Gonzalo inventa o termo ‘feiosexual’ e defende ‘uma forma de vida que não dependa do espelho’. Num país internacionalmente conhecido pela sua obsessão com a imagem, o livro foi um sucesso e – embora o imposto sobre a beleza não tenha ido para a frente – chamou a atenção para uma sociedade dominada pela aparência física.
“Gonzalo defende que a vida é mais fácil para os belos”, nota a jornalista inglesa Christina Patterson no ‘The Independent’. “Muitas mulheres não dão por isso porque sofremos de uma falta de confiança em nós próprias que raia o dismórfico. Até a mais bela mulher olha para um espelho e só vê falhas. As supermodelos lamentam o nariz ou o cotovelo. Nações inteiras sonham em perder três quilos. E não reparam nas vantagens que ser belo lhes traz. Até àquele momento na meia-idade em que nos tornamos invisíveis.” Como afirma Christina, “existe de facto um imposto da beleza. Chama-se velhice”. Mas até que ela chegue queremos que os nossos filhos se tornem uma ‘nação de obcecados’?
As mais giras são mais felizes?
“É triste não fazer parte do rebanho de alguma maneira, principalmente na adolescência”, concorda Sónia Oliveira. “Mas elas têm de perceber que vão fazer a vida delas normalmente, e não vão deixar de ser amadas por causa disso.” Nunca foi fácil ser diferente. Mas a verdade é que também podemos tirar partido disso. E será que as mais giras e populares serão mais felizes? Porque essas também têm a ditadura da beleza e regras rígidas que acham que têm de cumprir. Ou seja, ser feia pode ser uma forma de liberdade, o problema é o tempo que levamos a aprender isso.
“A beleza é hipervalorizada hoje em dia, daí o sofrimento de tanta gente”, nota a psicóloga. “Mas se fizermos uma sondagem ou observarmos as pessoas à nossa volta, não são os mais bonitos que são mais felizes ou que têm mais sucesso. Até porque as bonitas andam coladas a esse rótulo, e como têm a vida mais facilitada não se esforçam tanto.”
Portanto, passe ao seu filho a noção de que é aceite incondicionalmente, de que a beleza é mesmo subjetiva (de outro modo, os feios nunca se casariam…) e dê-lhe armas para combater a superficialidade do mundo. E depois deixe-o ir à luta. Afinal, algumas batalhas só podemos travar sozinhos…