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Svetlana Ivanova

Vou a casa da minha amiga Luísa, que teve um bebé há quase um ano. O prédio não tem elevador, e passo por um andar em que do outro lado da parede a cena estala em gritos e choros: “Não consegues ter melhor nota porquê, diz-me lá? És menos que os outros? O António teve 100% no teste e tu só tiveste 98 porquê? És menos que ele?”

Não vejo, mas ouço. A mãe grita com a criança, que desata num choro desabalado. O pai está lá, mas não faz nada. Fico verde de medo e não é nada comigo… Como é que alguém acha que vai conseguir alguma coisa aos gritos?

Subo mais um andar e encontro a Luísa transtornada. “Tu não sabes o que é ser mãe!” Explode. Preparo-me para o pior. Ela desabafa: “Não calculas o que é passar de repente a pertencer ao clube das mães. As mães deste país não têm mais nada em que pensar senão nos filhos. ‘E os dentinhos?’, passo a vida a ouvir ‘e os dentinhos, quantos dentinhos tem?’’, e ‘já gatinha?’, e é tudo numa de ‘Ai o meu Bernardo Maria já tem 54 caninos e já trepou ao Evereste’, quero lá saber dos caninos e dos que gatinham ou não gatinham, e no ginásio? Às vezes vou ao ginásio à hora em que lá estão as mães com as pré-adolescentes. As conversas dão-me suores frios. ‘Ó Madalena, que nota tiveste? Mas a vossa professora não é a mesma? Porque é que tiveste uma nota melhor que a Maria quando responderam a mesma coisa no teste?’

A competição é assustadora desde que nascem, estas mães que vivem através das crianças, esta gente que não tem mais nada, mais valia que não lhes ligassem nenhuma e tratassem da vidinha delas. E as miúdas ao espelho, vestidas como adultas, a esticarem o cabelo e a fazerem boquinhas. Não quero ser o tipo de mãe que liga às mães das amigas para saber que nota tiveram, espero que se um dia tiver uma filha, nunca a veja ao espelho a fazer boquinhas e a dizer parvoíces, vou educá-la longe daqui, vou educá-la no campo entre as vacas, ficava malcheirosa mas talvez não dissesse tolices.”

Porque queremos filhos ‘precoces’?

Saio dali maldisposta com o discurso das vacas e a achar que tenho de fazer qualquer coisa para mudar o mundo, ou pelo menos arrumar a cabeça.

Decido pedir ajuda à Eunice Neta, uma das psicólogas mais lúcidas que conheço. Mas afinal, pergunto, porque é que andamos tão obcecadas com as crianças e com as notas das crianças e com os dentes das crianças? E isso não foi sempre assim? E não é, sei lá: normal? “Mães competitivas sempre houve”, responde-me ela com toda a calma. “Mas este fenómeno a que estamos a assistir é recente e vem da cultura do sucesso que substituiu a meritocracia. Vemos esta ansiedade brutal desde que eles são bebés. Não se trata apenas de verificar que as crianças estão dentro dos parâmetros normais, preocupação comum a todas as mães. Agora queremos que elas sejam ‘precoces’, que façam tudo antes dos outros e melhor do que os outros, como se isso servisse de alguma coisa.”

Mas porquê? “Não há uma razão única. Primeiro, estamos na cultura do ‘melhor’. Agora temos todos de ser os melhores, mesmo as crianças. Projetamos nos filhos aquilo que gostaríamos de ter sido ou feito, o que sempre aconteceu. Isto viu-se com a enchente do concerto da Violetta. Por que é que demos 500 euros por um bilhete? Porque se calhar todas nós sonhámos dar um beijinho ao George Michael (risos). Diferença: nenhuma das nossas mães daria 500 euros para isso. E porque é que o fizemos? Para poder dizer que o fizemos. As crianças, hoje, são um símbolo do nosso status e não apenas a nossa continuidade genética. Sempre projetamos sonhos e desejos nos filhos, mas hoje isso tornou-se exibição, competição e um aceleramento ao qual as crianças não deviam estar sujeitas.”

Eu sabia que esta mulher me ia dar más notícias. Mas a telenovela ainda não acabou.

O menino 98%

Conto-lhe a cena do ‘se o António teve 100% no teste, tu não és menos que ele’. Ainda estou a tremer. Eunice começa a dar-me uma lição. “Em psicologia falamos de ‘diferenciação’ na família.” Ou seja, a família é o local onde nós podemos descobrir quem somos, e em que é que nos diferenciamos dos outros elementos, com base no amor incondicional. Isto nem sempre é fácil, porque aquilo que nós somos nem sempre é aquilo que os nossos pais sonharam para nós. Aquilo que esta teoria nos diz é que, se o nível de diferenciação for muito elevado, a família fica sem sentido de união. Se for muito baixo, há um ambiente claustrofóbico. E o que é que estas crianças sentem se não tiverem a melhor nota?”

Não sei. Medo? “Exatamente. Medo. E isso é grave. O que essa mãe diz é: “Tu não és menos do que ele”: ora aquilo que nós somos não se demonstra pelas notas que temos. Esta criança, com um nível tão baixo de diferenciação que não pode falhar e tem de corresponder às expectativas da mãe, nunca vai sentir que é suficientemente boa. Para ela, o que vai importar na vida é o sucesso a todo o custo.”

Mas aquela mãe acha que está a fazer aquilo que é melhor para a criança… “Sim, mas há alturas em que é preciso deixá-las falhar, até para as crianças aprenderem a lidar com a frustração.” Está bem, mostre-me alguma mãe que deixe a criança ter uma negativa: “Há quem deixe. E aí há que rever o processo de aprendizagem. Se acontece uma má nota, o importante é voltar a aprender, sem pôr em causa aquilo que a criança é. Um processo de aprendizagem que correu mal pode vir a correr bem. Ou não: às vezes, há áreas para que os miúdos não têm mesmo jeito, e não vale a pena fazer um drama disso. Todos nós temos forças e fraquezas, mas passamos a vida a focar-nos nas nossas fraquezas quando seria muito mais produtivo puxar por aquilo em que somos bons.”

E como vai a sua vida pessoal?

Pelos vistos, o problema da competição materna não é só cá. Para desanuviar, ainda me consigo rir com um site que lista os vários tipos de mães competitivas: a ‘Não Aguento’ (quase todas as mães têm um momento de ‘ai o meu Joãozinho é tão esperto!’). A ‘Melhor Que Todas’ (pronto, a festa dela é a melhor e a criança dela é a melhor, fim). A ‘Que Finge que Se Importa’ (“O seu Tiago ainda não anda? Mas tem a certeza de que ele é normal?”). A ‘Mãe de Bancada’ (“Remata, Sebastião Maria! Remata!”) e a ‘Mesmo Mesmo Má’ (pronto, é mesmo mesmo má) em www.rantsfrommommyland.com.

Como fiquei com dúvidas, torno a ligar à Eunice: é verdade o que a minha amiga Luísa diz, que a competição materna indica falta do que fazer? Parece que sim. “A intensidade com que algumas mães vivem a vida dos filhos pode ser sinal de uma vida pessoal muito vazia, e de uma vida de casal não satisfatória. Quando temos filhos, o sistema familiar abre-se: fazemos novos amigos, experimentamos novas atividades, e isso é uma oportunidade de abertura e de enriquecimento. Ou não: há pessoas que não conseguem fazer isto sem entrar em competição com as outras mães.”

Ela própria recebe casos destes no consultório. “Há famílias que me chegam porque estão a ter dificuldades a nível parental, e quando tentamos descobrir o que se passa percebemos que aquela relação de casal está sob tensão por outros motivos que nada têm a ver com as crianças, mas que estão a contaminar a parentalidade. Enquanto estiverem entretidos a discutir os filhos, não vão ter de olhar nos olhos um do outro e enfrentar o que está mal entre ambos.”

Do sucesso à compensação

Além da cultura do sucesso vivemos a cultura da compensação: “A atenção que damos aos filhos não é aquela que gostaríamos, mas esforçamo-nos imenso. E da mesma maneira, os pais também pensam que os filhos têm de os compensar deste esforço enorme de os acompanhar: sendo os melhores alunos.”

Hmm. Isto é vagamente sinistro.

E quando os filhos não nos ‘compensam’ e nós stressamos? “Mães ansiosas nunca ajudaram ninguém. Isso pode ter consequências dramáticas em termos de autoestima e de incapacidade de fazer face a situações de stresse. A criança não vai magicamente desenvolver estas capacidades porque a mãe quer que ela o faça e porque grita com ela. Se calhar, vai precisar de mais reforços positivos que a ajudem a desenvolver a autoconfiança e a capacidade de, numa situação de stresse, ter um bom desempenho, sem que a ansiedade da mãe a contamine e a bloqueie.”

As pessoas não batem nos filhos e portanto não consideram a exigência extrema como uma forma de violência, mas fiquei a pensar que a violência psicológica deixa marcas gravíssimas que ninguém vê. Eunice concorda. “A criança fica sempre na dúvida: se eu falhar, a minha mãe deixa de gostar de mim. Isto é viver com medo e incerteza a vida toda, e sempre com uma pressão enorme para agradar.”

E no dia em que o menino 98% conseguir finalmente 100%, o que é que acontece? “Nada. Não acontece nada. Não vai ser uma festa, porque a seguir àquele teste vai haver outro. A seguir àquele golo, vai haver outro. A exigência nunca vai abrandar, as expectativas são tão elevadas que nunca se chega lá, e a criança é mantida numa angústia eterna. E é expectável que esta criança um dia desabe. E o que é que acontece à mãe? Vai sentir que falhou enquanto mãe. Porque ela existe através da criança. Quando muito, para de massacrar as mães das outras crianças… (risos)”

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