*artigo publicado originalmente em novembro de 2017
Quase toda a gente que convive com adolescentes já deu por isso: se era tradicionalmente difícil arrancar-lhes uma palavra, agora mergulharam para dentro dos telemóveis e toda a sua vida se passa ‘do lado de lá’. Afinal, que consequências é que isto tem? Os próprios pediatras se interrogam: “As crianças são seres ultrassensoriais, que precisam de usar todos os sentidos, de agir corporalmente, de exercitar o olfato, o tato, o paladar. Ao reduzirmos a sua existência a um mero audiovisual, não estaremos a humilhar o ser humano, a castrar a criatividade, a criar pessoas que deixaram de se saber relacionar com os outros, que deixaram de saber argumentar, de pagar o preço da relação?”, pergunta o pediatra Mário Cordeiro no prefácio ao livro ‘Geração Cordão – a geração que não desliga’.
Outra questão que preocupa os médicos é a ‘prisão’ de se estar sempre comunicável. “Onde está o direito à solidão, à intimidade, ao contacto com a natureza, ao namoro, ao encantamento, à contemplação?’
Estas perguntas dão o mote ao livro, onde a psicóloga Ivone Patrão reflete sobre os muitos dilemas colocados pela ‘geração que não desliga’. Primeiro ponto: eles estão mesmo a perder a capacidade de se relacionarem? “Sim, estão mesmo a perder muitas capacidades sociais”, confirma Ivone Patrão. “Nos casos mais graves de dependência, são incapazes de olhar os outros nos olhos, não têm muita capacidade de resposta às perguntas, são diferentes dos outros adolescentes. Mesmo quem faz sexo online, acaba por dizer que tem prazer mas falta alguma coisa: o toque, o olhar, o cheiro.”
Para as gerações mais velhas, isto soa assustador. Afinal, que tipo de geração vai sair daqui? “E vão trabalhar em quê, quando chegarem ao mercado de trabalho onde se privilegia cada vez mais as competências sociais?”, reforça Ivone. Mas claro que o assustador é se só tivermos disto. “Há muitos adolescentes que usam as tecnologias mas fazem desporto, estão com a família, vão à festa de anos da avó.”
Chuchas virtuais
A segunda preocupação de Mário Cordeiro também aparece: afinal, os adolescentes passam os intervalos da escola ao telemóvel. E passam os tempos mortos nos restaurantes a jogar. Levam o telemóvel para a casa de banho e para a cama.
Questão 1, como ‘destressar’ uma geração que está continuamente ligada e só concebe a sua existência online, e ponto 2, que tipo de geração esta que já não se sabe aborrecer? Ponto 1: “Faz-lhes falta não estar constantemente ligado, ter tempo para ir fazer outra coisa, para respirar”, nota Ivone Patrão. “Eles não param para pensar, não refletem sobre nada, não ‘assentam’, não ouvem a sua voz interior. Estão sempre em relação e isso não é saudável. Muitas famílias já fazem um ‘encontro’ de tecnologia à noite, em que os telemóveis ficam todos num sítio e as pessoas se afastam para conviverem. E em algumas casas essa hora sem tecnologia é um drama.”
E não, eles já não se sabem aborrecer. Toda a sua vida é ‘entretenimento’ sucessivo. “Não estamos a trabalhar a resistência à frustração ou o pensamento criativo”, confirma a psicóloga. “Por isso é que eles precisam de tempo sem ecrãs. Por exemplo, fiz uma viagem com a minha filha de 5 anos. E, a certa altura, ela vira-se para mim e diz ‘dá-me aí o teu telemóvel, que eu não tenho nada para fazer’. Disse-lhe que ela sabia as regras, e que não lhe ia passar o telefone, que se entretivesse com outra coisa qualquer. Passado um bocado, exclama ela: ‘Olha tantas vacas lá fora!’ (risos) Depois viu ovelhas, depois pôs-se a falar das árvores que conhecia, e lá se entreteve. Mas claro que isto podia não ter corrido bem. Ela podia ter feito uma birra, eu podia ter que dizer não várias vezes, e claro que é mais fácil dar logo. Nós queixamo-nos dos telemóveis, mas servimo-nos deles como chuchas virtuais. Isto não significa que a minha filha não consuma tecnologia, consome porque é o mundo dela. Mas não pode ser todo o seu mundo.” Tecnologia zero é a solução? “Não. Cada família é que tem de encontrar o seu equilíbrio e a gestão do seu tempo.”
Devo ser amiga do meu filho no Facebook?
“Deve”, defende Ivone Patrão. “Mas desde sempre. Não é de repente aos 16 que lhe vai pedir amizade. O que tem sentido é sentarem-se todos à mesa e falarem sobre questões de segurança, e cada um fazer a sua sugestão sobre a melhor maneira de gerir isto. Claro que com crianças é fácil estabelecer regras porque elas querem muito participar.”
Hmmm. Então imagine que é minha mãe (risos). O que é que faz no meu Facebook? “Posso simplesmente pôr um like. A tecnologia pode ser uma mediadora da relação, e este controle deve ser sempre feito pela positiva, pela partilha. Claro que vai haver posts de que não vamos gostar, mas nada nos impede de falar sobre isso. O que não pode é haver uma crítica feroz, porque isso cortará todo o diálogo.”
Tem de haver regras e não uma ligação constante às redes. Mas se eu nunca instituí essa regra, e se tiver filhos adolescentes, mesmo assim mais vale tarde. Tem é de ser muito bem negociado ou então é inútil. “Agora com o Baleia Azul muitos pais exigiram o acesso ao Facebook dos filhos, à password, etc. O quê, mas agora, quando ele já tem 15, é agora que vai controlá-lo? Não! Nem vai pedir nem vai conseguir. Tudo isso tem de ser negociado.”
A baleia assassina
O jogo – que não é jogo nenhum – ‘Baleia Azul’, em que um ‘mentor’ online coloca desafios cada vez mais perigosos – são 50, que vão de coisas como fazer cortes na pele em forma de baleia até ao suicídio – tornou a levantar a questão da segurança na internet. Afinal, como se educa um adolescente para estar alerta? “Antes de mais, é preciso lembrar que o ‘Baleia Azul’ acontece com jovens de grande vulnerabilidade, tanto vulnerabilidade psicológica como familiar e social”, lembra Ivone Patrão. “Não costuma acontecer em famílias atentas, onde as coisas sejam conversadas.”
A automutilação não é de hoje: desde sempre houve jovens que se cortavam. “A diferença é que dantes tínhamos cortes verticais ou em cruz e agora temos desenhos”, explica a psicóloga. “Nós já sabíamos disto porque eles nos contavam, só agora é que saltou para a Comunicação Social. São jovens em grande sofrimento, muito fechados e isolados, e muito ‘vestidos’, usam mangas compridas para que não se vejam as mutilações. O sofrimento psicológico é tal que quer o corte físico quer o testar de limites são formas de o aliviar.”
O que acontece no Baleia Azul é diferente dos clássicos desafios de grupo dos adolescentes – as corridas de motas, o vamos ver quem nada até mais longe: “Esses são uma coisa social, dependente do olhar e da aprovação do grupo. No Baleia Azul são atos isolados.”
Também há jovens que aderem por curiosidade. “Há quem entre para ver o que é, mas nunca lhe passa pela cabeça fazer o que o mentor diz. Não têm sofrimento dentro deles que responda àquilo e portanto não aderem. Ou seja, isto só é apelativo para quem está em grande sofrimento. E quem o faz, faz sozinho.” Porquê? “Porque não quer correr o risco de uma crítica do grupo. Assim, tem um mentor que vai ao encontro daquilo que ele está a sentir. Tem um grupo de ‘apoio’, que o destrói. E não anda a partilhar com quem não faz, porque não estão nada interessados nisso. Nestes casos, o importante é que eles queiram falar daquilo que sentem, essa é a dificuldade. O caminho é encontrar estratégias que não passem pelos cortes ou pelas ideias de morte.”
Ainda vai piorar antes de melhorar
Voltamos ao princípio: que consequências é que vai haver para esta geração continuamente em rede? “Não sabemos, porque ainda nem sequer atingimos o pico da dependência online”, defende Ivone Patrão. “Ainda estamos focados nas vantagens e pouco no impacto negativo. Mas as consequências serão sobretudo relacionais. E vivemos desatentos. No Japão, além do corredor das bicicletas, já existem cidades com faixa para quem anda com os olhos no telemóvel, porque os acidentes começaram a ser imensos.”
Vai chegar uma altura em que vamos perceber que precisamos de passar menos tempo online. “Mas ainda estamos na fase de ascensão, e vão surgir ainda mais situações de jogos perigosos, de dependência, de jovens com falta de dotes sociais, e tudo isto nos vai fazer cair na necessidade de recuarmos e de nos encontrarmos sem a mediação da tecnologia.”