Há uns tempos, farta de estar em casa, convidei uma amiga para ir ao cinema.
Fiz a minha pequena chantagem emocional: ‘Já não te vejo há tanto tempo…’ Resposta: “Não posso porque tenho Manel comigo.” O Manel é um calmeirão de 14 anos. Ora vocês, quando eram calmeirões de 14 anos, não ficavam em casa durante duas horas enquanto os pais saíam? Fiquei a pensar se o Manel seria incapaz de aquecer uma pizza ou cozer massa com atum, ou que medos teria a mãe: vivem num condomínio fechado com código para entrar, qual era a probabilidade de alguém raptar o Manel nas duas horas em que a mãe ia ao cinema.
Bem, saí para jantar com outros amigos, entre os quais um miúdo da mesma idade do Manel. Pois o rapaz foi incapaz de me dizer duas palavras seguidas e passou o jantar inteiro mergulhado no Iphone, sem se dignar a trocar duas palavras com alguém.
Tudo isto me fez pensar naquilo que não estamos a ensinar às crianças (e menos crianças). Se calhar, saber ficar em casa sozinho durante 2 horas ou conseguir fazer conversa com estranhos durante 5 minutos não vos parecem dotes muito importantes na vida de uma pessoa. Mas que mais é que não estamos a passar-lhes? Fui perguntar a duas especialistas, afinal, o que é que as crianças devem aprender fora da escola?
Está a educá-los para as emoções?
“As crianças deviam ser educadas para a emoção, e já não estão a sê-lo”, defende Maria José Araújo, investigadora e professora na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto. “Estamos todos muito preocupados com o desempenho escolar das crianças, o que é normal em tempo de crise. Curiosamente, embora o façamos com a melhor das intenções, isso não está a ajudá-las em nada.”
Que significa ‘lidar com as emoções’? Significa ajudar as crianças a olhar mais para dentro do que para fora. “Os pais e os educadores estão muito focados nas aprendizagens a nível intelectual”, reforça a psicóloga Eliana Vilaça, responsável pela consulta de adolescentes da Clínica Psicronos.”As crianças são cada vez mais cedo estimuladas a aprender. Este aprender centra-se nas aprendizagens escolares e aquisição de conhecimentos factuais e enciclopédicos, e fica muitas vezes de fora a linguagem dos afetos e a importância das relações.” Para ambas, há qualquer coisa que está a perder terreno: brincar.
“É fundamental”, nota Maria José. “Se se está sempre a falar na escola, as crianças desligam, porque para elas aquilo é um aborrecimento. Nós fazemos uma hipervalorização da escola, e há imensas conversas que se podem ter e não passam por aí. Porque mesmo quando se fala da escola, os pais só falam de testes e resultados. Nunca falam no processo de aprendizagem, na forma como as crianças reagem a isso. É urgente ajudar as crianças a lidar com as suas emoções.”
“Deve ser permitido à criança brincar espontânea e livremente, sem pretexto, brincar só pelo prazer de brincar”, afirma Eliana Vilaça. Ou seja, deixá-lo apenas brincar sem que ele tenha necessariamente de ‘aprender’ alguma coisa com aquilo.
Tempo para fazer perguntas
“Temos de ajudar as crianças a olhar para si próprias”, nota Maria José Araújo. “A criança que aprende a olhar para dentro, a conhecer-se, a ter confiança, a aprender com os erros, geralmente é uma criança que tem sucesso.” Ou seja, as crianças têm de ter espaço e tempo para fazer outras coisas que não a escola. “Mas como não temos tempo, tudo é orientado para uma resposta e elas não têm espaço para a verdadeira base do conhecimento, que é a curiosidade, a pergunta.” Daí muitas vezes as más notas e o desinteresse…
“As crianças querem respostas às suas perguntas e não querem estar sempre a responder àquilo que lhes perguntam. Os adultos seguem muito uma pedagogização, querem ser professores em tudo. Claro que é legítimo que a preocupação dos pais seja a escola. Mas as crianças não vivem só disso. E temos de pensar que nunca mais voltam à infância para a reviver…”
Problema: quem chega a casa tem de ir tratar do jantar enquanto as crianças fazem os trabalhos. Que tempo sobra para outras aprendizagens? “Os pais também são muito responsáveis pela quantidade de TPCs que as crianças levam para casa. Se reclamassem mais, as coisas começavam a mudar”, defende Maria José.
“O problema é que os pais têm medo de prejudicar os filhos, e pensam que ouvi-los é menos importante que fazer contas. Não percebem que estão a prejudicá-los muito mais se não respeitarem o seu cansaço, se não brincarem com eles e não valorizarem o brincar.” Se o meu filho tem 7 ou 8 anos, está farto de empinar matéria e quer é ir jogar Playstation ou ver vídeos no Youtube, estou a prejudicá-lo se não o deixo descansar? “Claro que sim. E depois os pais partem do princípio que as crianças são preguiçosas e que não estão para se cansar. Mas cansadas já elas estão! Os pais têm medo que o filho fique para trás, mas têm de se lembrar de que estão a prejudicá-lo muito mais! A única hipótese de ensinar alguma coisa é criar uma relação, respeitá-los e ouvi-los. Agora, se só queremos crianças que repetem, teremos crianças robôs, e mais tarde ou mais cedo elas vão desistir de qualquer coisa que não é humanizada.”
A arte de não viver na lua
Portanto, tem de haver tempo para quê? Aprender a cozinhar, por exemplo. Desenvolver a expressão artística: desenhar, pintar, dançar, ouvir música.
Ou para qualquer coisa tão básica como aprender a olhar para os outros: que precisa de ser ensinada.
“O curioso é que estamos no tempo em que se ensina formação cívica nas escolas, mas nem por isso temos jovens mais bem formados”, nota Eliana Vilaça. “Vivemos tempos cujo imperativo é o sucesso e a ascensão individual. É estimulada a competição e desvalorizada a cooperação. Isto estará a contribuir para a falta de empatia e consideração pelos outros.” Ou seja, esta sociedade em que as crianças vivem não valoriza a bondade nem o olhar para os outros: “A sociedade privilegia aspetos da personalidade como o ser-se proativo, desenrascado, bom nos negócios. Antigamente era-se reconhecido por ser-se honesto, cooperante, estar disponível, estar envolvido na comunidade. Era valorizado aquele que fosse sério e honesto, agora é valorizado aquele que é astuto.”
A própria Eliana tem reparado na falta de civismo dos mais novos: “Mas também reparo que eles não fazem por mal, fazem-no sem qualquer consciência de que o seu comportamento pode ser de pouca consideração para com os outros. Alguns adolescentes parecem passar pelos outros sem perceção disso. Vão alheados. Ou vão alheados pelos telemóveis, ou pela música nos auscultadores, ou pelas interações uns com os outros. Mas parecem nem reparar que há pessoas à frente deles, que os idosos podem precisar de tempo para entrar no autocarro, etc.” Portanto, uma das coisas que podem aprender é a questionar o que lhes é incutido por uma sociedade em que é cada vez mais difícil ser-se humano.
E agora, que vamos fazer?
O tipo de atividades escolhidas terá a ver com os interesses de cada família: “Se para certas famílias é mais importante a cultura artística, se calhar outras dão mais valor ao contacto com a natureza”, nota Eliana. “Há famílias que têm dinâmicas muito interessantes. Algumas discutem a organização das tarefas em conjunto, o que permite que os jovens se sintam envolvidos. Alguns pais deixam que uma parte do orçamento familiar seja gerido pelos filhos, o que pode ser bem divertido.” Para além disto devem ser estimulados o saber estar nas relações e ver o outro.
“Devem estar em ambientes diferentes dos seus, em culturas diferentes, com pessoas com realidades diferentes das suas. Devem refletir, opinar, desenvolver ideias. Devem querer saber o que se passa no mundo e o que se passa à sua volta. Devem querer fazer parte da vida dos outros, contribuir para a vida dos outros. Devem ler e viajar, pertencer a grupos e associações, envolver-se na comunidade a que pertencem. Devem aprender a cooperar para um fim comum, respeitar regras e ter modelos respeitáveis.”
E se os pais devem ensinar os filhos, os filhos também podem ensinar os pais, porque uma partilha de sentido único não é partilha nenhuma: “Mas os pais têm de estar disponíveis. Os jovens devem sentir que querem saber deles e das ideias deles, para também poderem querer saber dos outros e das ideias dos outros.”
Mais ideias para o tornar numa pessoa mais completa? Algumas coisas que as crianças deviam saber são: aprender a poupar e a pagar contas, a gerir dinheiro. Aprender a discutir, a pensar criticamente e a ler. Pensar positivo, estar motivado, saber o que o anima, mimar os outros, não ter vergonha de se apaixonar (por pessoas, ideias, atividades).
Ser compassivo. Saber ouvir e saber conversar, prestar atenção ao que o rodeia, estar presente. Limpar a casa, organizar-se, resolver uma emergência. Apreciar a comida, rir-se com prazer. Encontrar um objetivo de vida, amar-se a si próprio, amar os outros e tratar toda a gente com respeito: família, amigos, desconhecidos.
É muito?