Foto Pexels/Kampus Productions

Há anos que a psicóloga Cristina Valente nos apresenta o nosso espelho e nos devolve a imagem das gerações que construímos com os outros seres humanos. Ela própria faz parte da sofrida Geração X. Aliás, já somos duas. Não foi fácil: assistimos a tudo o que o mundo tinha para oferecer de instável e perturbador: a guerra fria, a queda das Torres, o terrorismo. Estávamos a crescer quando a forma de funcionamento da humanidade mudou radicalmente quase de um dia para o outro, com a chegada dos computadores e da Internet ao mundo de quem, como nós, passou uma infância, e alguns uma adolescência inteira, sem sequer um telemóvel. Muitos atravessaram casamentos conturbados. Pomos no Facebook ‘é complicado’ quando queremos definir a nossa relação. E no entanto, vistas bem as coisas, do ponto de vista educativo nem nos saímos assim tão mal.

Podemos ver o estudo das gerações como uma espécie de ‘signos’ sociológicos, porque na verdade as pessoas não são todas iguais. Mas partilhamos todos algumas características que vêm de termos partilhado o mesmo mundo, as mesmas dificuldades, os mesmos acontecimentos. Não crescemos todos na mesma família nem reagimos da mesma maneira, mas há traços comuns. É isto que estuda Cristina Valente. Autora do livro ‘Geração Z: entender e inspirar o seu futuro’ e de um estudo com 1200 jovens entre 18 e 20 anos, é a melhor pessoa para me dizer, já que falamos em futuro, afinal como vão ser as crianças pós-Z. Bem-vindos à geração Alpha.

A primeira geração global

“A geração Alpha nasce entre 2012 e 2025 (pode haver pequenas variações)”, explica Cristina Valente. “Portanto, ainda há miúdos Alpha por nascer. Que tipo de pessoas vão ser? Na verdade vai depender muito do que fizermos agora, mas já temos algumas pistas importantes. O que os especialistas preveem é que a geração Alfa tenha as mesmas características que os Z, só que mais vincadas.”

Então vamos lá recordar a matéria dada, começando por aquilo que mais define a geração Z: “Abraçam causas e são extremamente ativistas e solidários. A diversidade é a norma, porque são globais, vão dar-se e vão casar muito mais com pessoas com outras raízes, religiões, culturas, países. Para eles não existem estas fronteiras que mesmo os Millennials ainda têm. Porquê: porque são os primeiros nativos digitais, e isso moldou totalmente a forma como olham para o mundo. Eles estão formatados para viverem e trabalharem em rede. Estão muito virados para os outros, e este ativismo prevê-se que vai continuar na geração Alpha.”

O estudo das gerações funciona como um agregar de tendências comuns a pessoas nascidas num determinado espaço de tempo. Cristina explica: “Todos passamos pela fase da adolescência, que é quase sempre um corte. Mas uma geração faz-se das qualidades que solidificam em adultos. E aí, o que conta é a formatação dos pais, porque a nossa matriz é construída na primeira década de vida. Por isso é que a geração Millennial e os Z são muito diferentes. Achamos que, por serem cronologicamente próximos, deviam parecer-se mais, mas isto não acontece, porque a geração Z foi criada por pais da geração X.”

Curiosamente, e é aqui que isto fica ainda mais interessante, a geração Alpha vai, em princípio, ser a primeira em que esta diferença de gerações próximas não vai ser tão acentuada, porque, mais do que pelos pais, serão educados pelo mundo. São a primeira geração global. “Segundo os sociólogos, pela primeira vez na História uma geração vai fazer o contínuo com outra e não o corte”, explica Cristina. “O digital baralhou todos os dados. Portanto, os Alpha vão ter influência dos pais, os Millenium, mas vão ser muito mais infuenciados pelos seus pares, ‘mentores’ e irmãos mais velhos, a geração Z.”

Esclarecidos digitais

Resultado: para conhecermos a futura geração Alpha, importa conhecermos melhor os Z, porque é daí que vamos partir. O mais marcante na geração Z: o peso do mundo digital.

Que papel vai ter ao certo o digital na vida dos Alpha? “Na verdade, nós não sabemos responder totalmente a essa pergunta”, responde Cristina Valente. “A geração Z é a primeira a nascer no digital, não foram os Millennials. E isso muda tudo. Por exemplo, quando falamos em digital pensamos imediatamente em redes sociais, mas as redes são apenas um dos usos do digital. E na minha opinião, é uma moda e vai diluir-se. Mas o digital, vai ficar. Só que a relação que os nossos netos vai ter, e já tem, com esse mundo é muito diferente da nossa e mesmo da dos Millennials.”

Então vão ‘servir-se’ da web mas não para serem escravos do Instagram, é isso? “Há muitos miúdos a fazerem coisas interessantíssimas no digital, mas como não entram na nossa narrativa, associamos sempre o mundo digital ao seu lado menos bom”, explica Cristina. “E há uma diferença crucial: os Millennials são dependentes digitais. A geração Z é esclarecida digital.”

E os Alpha vão ser o quê, indiferentes digitais? “Longe disso: eles vão usar ainda mais o digital consoante os seus próprios interesses. Já faz totalmente parte da vida deles. Claro que vai haver de tudo, se falarmos de uma família com pouca cultura que estimule e acompanhe pouco os miúdos, eles vão ver toda a porcaria que existe na net, mas isso não é um problema geracional, mas do perfil da família. Um miúdo com mais mundo além da web vai saber usar os recursos digitais consoante os seus interesses.”

Portanto, vamos ter uma geração de autodidatas, de interessados, de ‘navegantes’, mas também, por arrasto, uma geração que não sai de casa e que vai ser ainda mais protegida do que os Z, aos quais já se chamou ‘uma geração de totós’. “A super proteção é um dos maiores problemas desta geração, e já está a ter enormes consequências”, assegura Cristina. “Juntamente com as redes sociais, vem provocar aquilo que as próximas gerações têm de menos bom: o potencial para doenças emocionais como falta de autoestima, ansiedade, ataques de pânico, depressões, ausência de rumo, porque a super-proteção dá-lhes a noção de que não são capazes. Há décadas – e isto não vem da pandemia – que o mundo está a viver uma época de grandes incertezas, e a forma como nós adultos estamos a preparar as crianças para essa incerteza global é protegê-los. Mas isso não os ajuda a desenvolver os músculos da frustração e da resiliência.”

Boas notícias: ainda estamos a tempo de fazer com que a geração Alpha seja, não menos digital, mas mais independente e mais capaz. “O futuro é o que nós fazemos dele no presente e estamos sempre a tempo de fazer com que seja diferente. E os pais e professores têm de ter essa consciência. Tal como os pais, os professores são fundamentais. Os pais são os líderes da criança dentro de casa, os professores são os líderes da criança fora de casa. Curiosamente, ambos estão a perder esta liderança pars um mundo que os transcende.”

Mais solidários mas mais frágeis

Portanto, os Alpha vão ser uma geração ainda mais solidária e aberta, mas psicologicamente mais frágil e mais sensível. E vão ter mais dificuldade nas relações ou isso é mito? “É mito. Por exemplo, os miúdos que têm agora 18-20 anos usam o digital para se manterem em contacto, mas eles não dispensam a presença física, dão imensa importância ao cara a cara. O que é confuso é o seguinte: muitas vezes não têm competências para essa relação pessoal. Mas isso não quer dizer que não a valorizem, não a queiram ou não precisem dela!”

As pessoas mais novas que estão a entrar agora no mercado de trabalho marcam uma tendência que a geração seguinte vai reforçar ainda mais: a valorização do tempo que se passa com quem mais amamos. E curiosamente, depois da enxurrada de ecrãs com que foram educados, os miúdos do futuro virão a valorizar ainda mais as relações inter-pessoais. “No meu estudo, 50% deles ainda quer casar”, nota Cristina Valente. “Repare: a geração Z é filha da geração X, que se divorciou muito, arriscou muito e sofreu muito no casamento. Os filhos não querem cometer os mesmos erros. Por exemplo, uma das coisas com que eles mais se preocupam no mercado de trabalho é encontrar um emprego que lhes dê tempo para a família. Portanto, eles querem casar sim, mas provavelmente vão quebrar algumas tradições. Casam ou juntam-se, mas à maneira deles, sem estarem muito preocupados com o que as outras pessoas pensam ou o que a tradição manda. Por exemplo, uma rapariga disse-me que queria um ‘casamento vegan’…”

Outra coisa em comum com os Z e muito diferente dos Millennials: os Alpha estarão menos preocupados com a imagem. “Hoje isto já acontece. Os mais novos usam por exemplo roupas em segunda mão, reciclável, largas ou genderless, sem género, para combater a questão da imagem e do sexismo. Eles compram por exemplo duas ou três calças iguais, para não pensarem mais nisso. O ideal de vida deles é descomplicado. Não gostam de refeições em que se fica horas à mesa, preferem snacks, para poderem estar no telemóvel e a comer. São e vão ser cada vez mais pessoas fluídas, numa procura do equilíbrio que se calhar faltou tanto às outras.”

Os reis da casa

Outra tendência global é que uma família venha a ter mais avós e bisavós do que netos. Isso significa que vamos endeusar cada vez mais as crianças e portanto teremos uma multidão de adultos mimados? “Isso vai depender muito de nós”, explica Cristina Valente. “Mas é um grande problema, uma grande preocupação, e uma coisa que deveríamos mesmo mudar, a par com a super-proteção. Por exemplo, não os entupir de presentes do Natal é dos maiores legados que lhes podemos deixar. Mas admito que é uma ousadia e uma luta difícil, porque ninguém faz isso. Não tenho nenhum amigo que no Natal dê apenas um presente aos filhos. As pessoas estão muito dependentes do amor das crianças mas têm de perceber que o amor das crianças não está nada dependente de presentes! Os pais são os líderes, e têm de dar o exemplo da forma como querem que as suas crianças pensem. E esse é o papel que nós temos no futuro.”

O que é que temos de fazer então no presente para sermos pais e mães líderes? “Ser líder não significa ser autoritário, é precisamente, como estamos a falar neste artigo, desenvolvermos a nossa visão de longo prazo e percebermos como é que podemos, com aquela pessoa que ali está, co-criar um futuro melhor. Eu tive de explicar ao meu filho que ele não podia entrar no Facebook com dez anos. Portanto, temos de ser suficientemente fortes para não nos deixarmos abater pela pressão social ou familiar, porque de outra forma estaremos a dar uma educação acidental. E nós não queremos um futuro acidental, queremos um futuro intencional. Aquilo que precisamos hoje em dia é de uma educação consciente.”

‘Co-criar’: adoro a expressão. Porque educar e criar um futuro é mesmo um trabalho de grupo, entre pais e filhos. Mas espere lá: segundo eu percebi, quem vai educar os Alpha são os Millennials, já não somos nós (ufa), a instável mas esforçada Geração X. E estarão os Millennials preparados para essa missão? Pois: parece que não. “Os Millennials estão a espelhar em casa a mentalidade corporativa, toda orientada para ‘resultados’”, nota Cristina Valente. “Nas minhas consultas, o que me dizem que querem para o futuro dos filhos parece o relatório de uma empresa. O mind-set parental é corporativo. E isso é assustador. Claro que eles querem o melhor para os filhos, mas tudo naquelas vidas se fixa nas notas. Tive um adolescente que só tinha 20s, mas tentou o suicídio duas vezes! Isto acontece na escola e em casa, e os miúdos revoltam-se! Eu perguntei no meu inquérito ‘Qual é a razão porque vais para escola’, e a resposta ‘Para estar com um professor’ teve zero por cento de respostas! Em mais de mil miúdos, nenhum deles queria estar com nenhum professor! Isto é gravíssimo.”

Vai correr tudo bem?

Se eu quiser ter um efeito duradouro nos adultos de 2033, há muito que posso fazer já. O mais importante, segundo os psicólogos, é controlar precisamente o nosso medo do futuro. “As nossas crianças são boas crianças”, assegura Cristina Valente. “Eu nas minhas consultas primeiro recebo os pais e depois o miúdo. E às vezes tenho dúvidas se estamos a falar da mesma criança! A mim dizem-me que estão cheios de problemas, eu falo com eles e vejo miúdos encantadores, compreensivos e com uma capacidade imensa para perdoar o histerismo dos pais. Se alguns pais ouvissem o que os filhos dizem deles, as palavras boas, queridas, humanas que eu ouço acerca de pessoas que passam o dia a stressá-los, a criticá-los, a corrigi-los, a cobrar-lhes notas…”

O problema é acharmos que estamos a dar o melhor. “E estamos! Mas nós muitas vezes somos pessoas adoráveis no dia a dia, e depois com os nossos filhos parece que vemos todos os fantasmas da nossa infância à nossa frente e arranjamos problemas onde eles não existem. Se são atléticos são hiperativos, se são sinestésicos são distraídos, só vemos problemas.”

Se lhe pedisse para deixar uma mensagem aos pais do presente, qual seria? “Relaxem. A sério, descontraiam. É uma boa geração. Vocês são boas pessoas. Vai correr bem.”

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