Estamos a ficar surdos à nossa tristeza?

De há alguns anos para cá, as áreas do crescimento pessoal e da autoajuda tiveram um crescimento muito grande, e começámos a ser inundados com coaching por todos os lados. Toda a gente nos falava de positividade, de alta performance, de resultados, de carreira, de estarmos bem. Depois as redes sociais começaram a puxar para o mesmo lado, e como tudo quanto é extremo tem uma consequência, começou a acontecer algo não previsto: as pessoas começaram a reprimir todas as emoções negativas, que são essenciais à vida. Tenho pacientes que deixaram de falar aos amigos porque a tristeza coneçou a ser tabu: que má vibe, vou é fugir daquela pessoa. Hoje a tristeza é uma doença.

Temos muito medo de sofrer, não temos?

Hoje quer-se acima de tudo a fuga à dor e à solidão e ao confronto connnosco mesmos. Nunca estamos sozinhos (quando estamos ao telemóvel não estamos sozinhos), nunca estamos sem estímulos, e fugimos à dor a sete pés, mesmo à dor mais comezinha como o desconforto do aborrecimento. Com os telemóveis, a net, as séries, nunca estamos sozinhos connosco próprios, estamos sempre anestesiados, alheios ao mundo e a nós.

E qual é o mal?

O mal é que isso tem consequências. Porque a tristeza é uma forma de dor: e a dor é sempre um aviso de que algo não está bem. A tristeza atua como uma bússula, indicando-nos o que está mal e precisa de ser resolvido. Viver é difícil. O ser humano não veio à Terra passar férias. E há que aceitar isto em vez de vivermos numa fantasia que não nos ajuda. Pensamos: ‘Tenho de ser feliz, tenho de ter um trabalho de sonho, tenho de viver uma relação perfeita’, e depois não temos nada. Mas em vez de lutar pelo que queremos, fingimos ter o que queremos. É mais fácil. Todos partilham a sua felicidade mas a tristeza é escondida como se fosse tabu.

Para que serve afinal tristeza?

A tristeza é um mensageiro. Conto uma experiência pessoal minha. Há uns tempos tive uma doença no estômago e passei uns anos muito doente, e tive de mudar todo o meu estilo de vida. Quando temos alguma doença, às vezes quase que parecem metáforas. O estômago está muito ligado ao sistema nervoso, como qualquer pessoa já reparou. Portanto, se eu não estava a ‘digerir’ bem a minha profissão e a minha vida, claramente isso ia-se refletir no meu corpo. Tudo isto são sinais, mas nós muitas vezes não os ouvimos. Imagine que acordo triste todas as segundas feiras, estou triste a semana toda, só penso no fim de semana. O que essa tristeza me está a dizer é que estou no trabalho errado, ou não estou com a prespetiva certa. E isso tem de ser mudado e não anestesiado, porque se eu estiver anestesiada, a fingir que sou feliz, a dor continua lá e não está a ser ouvida. A dor e a tristeza têm esta missão de alerta e de mudança.

Mas nós não nos autorizamos a sofrer, pois não?

Ninguém admite a dor, nem a si próprio nem aos outros. Mas isto não os ajuda. Imagine que termina uma relação. As pessoas nem têm tempo para o luto, porque dois dias ou três depois de tudo ter terminado os amigos já lhe estão a querer instalar o Tinder e arranjar alguém à força! É normal, estar triste faz parte do luto! Se se disser, há seis meses que não sai da cama, claro que isos não é saudável. Agora, acabou há dois meses um relacionamento de anos, deem-lhe espaço para pelo menos ficar triste em paz. O que acontece é que as pessoas não estão a processar nada.

E qual é a consequência?

Sabe qual é a consequência? Ataques de pânico. Os psicólogos têm registado um aumento brutal de ataques de pânico, e muito desta vaga tem a ver com o não processamento de emoções básicas como a tristeza. Um ataque de pânico é o copo a transbordar. Se acumulamos tudo, o coração acaba por disparar numa libertação de ansiedade. Se perguntar a alguém o que é que está a perturbá-la, as pessoas nem sabem responder, porque há tanta cois acumulada que já lhes perderam o rasto.

A ideia é irmos lidando com as coisas à medida que acontecem?

Claro. Temos de ir escutando a nossa dor. Sentamo-nos um bocadinho e pensamos, ‘de onde é que isto vem?’ Digo muito que tem de falar consigo como se fosse a sua melhor amiga.

Temos muitas vezes a ideia de que as pessoas tóxicas são aquelas que nos arrastam para baixo, mas as pessoas muito positivas também podem ser tóxicas, certo? As que nos dizem ‘vais ver que vai ficar tudo bem, ou isso não é nada ou não ligues’…

Sim, os outros dizem muito ‘ah isso passa’ ou ‘não te preocupes, segue em frente’. Mas isto passou-se há uma semana, sigo em frente como? E depois ainda me sinto mal porque não consigo seguir em frente.

Termos de ser fantásticas todos os dias está a dar cabo de nós, não está? E somos fantásticas cada uma à nossa maneira, mas a frustração de acharmos que devemos ser mais também nos impede de sermos felizes?

Tal qual. Somos humanos mas todos queremos ser divinos. Ora isso não está em nós. Há muitos mestres, grandes mestres, mas estão no Tibete! (risos) Nós nem olhamos para dentro, como é que podemos ser felizes e realizadas? Não temos estrutura para isso porque se eu fujo a sete pés de mim mesma, como é que quero ser feliz? Ser feliz dá trabalho. Se eu fujo da dor, estou a caminhar na direção da ansiedade. E muitas vezes é preciso passar pelo inferno para chegar ao paraíso. Se não aceitamos a noite não chegamos ao dia.

Também negamos muito este crescimento aos miúdos. Não os levamos aos funerais, não os deixamos ver telejornais, não lhes falamos de coisas tristes, nem os deixamos ler ‘O Diário da Anne Frank’ nem ver o Bambi, não os levamos a ver os bisavós ao lar. Também lhes negamos esse crescimento espiritual.. .

Pois negamos. E se a criança está um bocado triste, vai logo para o psicólogo. Quando levarem o primeiro pontapé vão ficar muito confusos, porque não vão saber lidar com aquilo, nem vão ter empatia para perceberem a tristeza dos outros. A tristeza neste momento é uma doença. E não podemos continuar a tratá-la como tal.

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