Psicólogo, investigador e professor na área de educação, defende que não basta dizer ‘a culpa é dos telemóveis’. Então o que é preciso fazer?
Crianças que se sentam a ver um filme e aguentam 15 minutos, adolescentes que não largam o telemóvel, adultos que nunca voltam os olhos para os filhos… Afinal, o que é preciso fazer para mudar isto?
Quando falamos em falta de concentração começamos a puxar um cordel muito comprido que tem a vercom todas as gerações. Porque não basta dizer ‘ah a culpa é dos telemóveis’. Tudo isto tem a ver com o estilo de vida dos miúdos – que é o nosso. Veja bem: não foram as crianças que determinaram a forma como vivem: elas caíram num ninho que, tendo muitas qualidades, também tem algumas fragilidades – a pressa, o saltitar entre atividades, o estar sempre em movimento, o estímulo constante. Claro que isto não acontece com todos os miúdos: isto são mesmo problemas de 1º mundo, sim.
A falta de concentração é um problema real?
Claro que é. E é piorada por um problema muito sério que contamina tudo isto e a que pouquíssima gente dá a importância que tem: as horas de sono dos miúdos. O último estudo mostra que 72% dos miúdos dorme menos do que devia. Isto é terrível. Eu e você quando estamos com sono claro que temos muito menos capacidade de concentração. Isto é básico? Claro que é. Mas a vida é feita de coisas básicas. Outro problema básico é que não temos rotinas funcionais. Isto é um problema seríissimo em boa parte das famílias. Os pais dizem ‘ai mas como é que vamos fazer isto’, pois fazendo… Agora está muito na moda ser contra as rotinas, mas tornam a vida tão mais fácil…”
Portanto, o estilo de vida dos miúdos não é favorável a longos períodos de atenção?
Pois. E portanto, ou nós levamos isto a sério ou isto vai ser difícil de alterar. Como é que eu quero que o meu neto leia se ele tem a playstation num lado e o telemóvel do outro? O problema é que os miúdos não são estimulados a ler. E outro problema é que os tempos da escola não ajudam. Não há nenhuma razão, do ponto de vista do bem estar dos miúdos, que eles passem o dia todo na escola. Claro que se percebe do ponto de vista da organização laboral dos pais. Mas isto é estar-se a resolver um problema pelos pés. Nós não devíamos exigir às escolas que albergassem os miúdos o dia todo. Devíamos exigir que os pais tivessem melhores condições de trabalho.
Durante a pandemia experimentou-se amplamente o modelo de trabalho em casa ou híbrido…
É um modelo que funcionaria para muitas pessoas. Mas a pandemia passou, e o que é que se disse? É preciso voltar ao trabalho presencial. Em resumo, aprendemos muito pouco com um período que poderia ter sido precioso e ter mudado enormemente a vida dos pais e das crianças. Quando eu tinha filhos pequenos, propus começar a trabalhar às 6 e sair às 2 para ir buscar o meu filho à creche. Não me deixaram. Em Portugal somos viciados em presentismo, E eu não vejo na concertação social discutir-se este tema dos tempos do trabalho. E sem estas questões laborais e sociais estarem resolvidas, é muito mais difícil os pais mudarem o que quer que seja. Eu como psicólogo posso aconselhar ‘o melhor para o seu filho era estar na cama às 9h’ mas como é que os pais vão fazer se chegarem a casa às 9h? E depois os miúdos ainda trazem TPC… Como é que eu instalo hábitos de leitura? Porque uma coisa é ler textos ou livros da escola, outra coisa é ler por prazer… Portanto, não podemos exigir que todas as famílias criem estes pequenos hábitos de leitura nos miúdos. Agora, se puder fazê-lo, organize-se e força.
Nós temos que mexer o estilo de vida para dar serenidade aos miúdos?
Mas isso é óbvio! Ou seja, os pais têm de ajustar a sua rotina na medida que puderem, obviamente. Se uma pessoa ouvir ou ler estes conselhos e depois disser ‘Estes tipos são doidos, como é que querem que eu faça isto com a vida que tenho?’ E depois não fazem nada. Portanto, façam o que puderem. Pequenas mudanças são melhores do que nenhuma. Quanto tempo é que pode dar por dia a esta criança? Dois minutos, cinco, vinte? Então esteja com ele durante esse tempo, mas só com ele, sem telemóvel, sem televisão. Se lhe disser ‘olha agora tenho 5 minutos para ti e depois vais brincar’ isso até fomenta a autonomia.
Outras ideias para que eles leiam mais?
Dar-lhe o contacto com aquilo que queremos que façam. Como é que vão ler se não há livros em casa e se nunca veem os pais a ler? Os pais passam horas ao telemóvel e depois dizem-lhes ‘devias ir ler’. É como eu estar de cigarro na mão a dizer ao meu filho ‘não fumes que te faz mal’ (risos)
Depois os miúdos têm dificuldades na escola e nós em vez de lhes darmos calma, sono e bons exemplos pomo-los num explicador… Porque é muito mais fácil comprar soluções.
Como é que no meio de tudo isto criamos algum rumo?
Temos de perceber o que é essencial na vida dos nossos filhos. Mas para fazer isto é preciso uma pessoa sentar-se um bocadinho a pensar nas coisas. Eu vejo pais abanarem a cabeça, concordarem inteiramente comigo, mas depois vejo mudanças na vida dos miúdos? Não vejo. Porque as pessoas no dia a dia estão de tal forma conectadas com o imediato que não páram para fazer alguma mudança.
É fácil passar estas ideias aos pais?
No outro dia fui a uma escola falar do impacto dos ipads. E a certa altura citei dados da Associação Americana de Oflatmologistas que aconselha tempos-limite de utilização de ecrans consoante as idades. Então um pai vira-se para mim e diz: ‘Mas isso são opiniões…’ E eu respondi: ‘Não vim trocar opiniões consigo, vim trocar conhecimentos.’ Mas ele não ficou convencido. Quando eu falo de rotinas não estou a falar de uma coisa militar, mas uma organização lógica do tempo. As rotinas são bens de primeira necessidade, tal como os nãos. Se quer oferecer um presente ao seu filho, ofereça-lhe um saquinho de nãos.
Os miúdos precisam de nãos?
Precisam. Porque eles não têm regras. E um não funciona muitas vezes como um sim a prazo. ‘Ó pai, posso brincar com o telemóvel’’ Não. Não. Não. Ó pá não me chateies, leva lá o telemóvel mas só 5 minutos e não estragas, e pronto, está tudo estragado. É como na ópera, vai em crescendo. Dizer não dá trabalho. E os miúdos precisam de regras e de previsibilidade, não almoçam quando calha, não vão dormir quando calha. Além de que quando há regras é tudo mais fácil e os pais não se cansam tanto. Porque é que isto parece tudo tão fácil e depois não funciona? Porque não somos perfeitos. Mas era fácil funcionarem.
Isto está a melhorar?
Os pais da nova geração são um bocadinho mais atentos, mas o padrão continua o mesmo. Vou é encontrando em pais novos mais abertura a falar nisso: estar mais tempo com os miúdos, ler-lhes uma história antes de dormir. Não é o livro que cria o leitor, é o contrário. A ideia é dar mais autonomia aos miúdos de maneira a que os pais tenham menos trabalho. Se eles souberem que esta hora é a hora de fazer TPCs e que se tiverem alguma dúvida dizem mas se não, trabalham sozinhos, isto – esta rotina – dá-lhes autonomia e os pais não têm de andar sempre em cima.
A rotina facilita o trabalho aos pais?
Imenso. Como dizia o Almada Negreiros, ‘educar é ajudar alguém a tomar conta de si próprio’. Os pais assustam-se muito com a droga, mas algum pai consegue estar com o filho 24 horas por dia? Não. Portanto, têm de confiar nos miúdos para dizerem não quando for preciso. Ora só diz ‘não’ quem está habituado a tomar decisões. Os meus netos sabem muito mais coisas do que eu sabia, mas são muito mais dependentes do que eu era. Porque nós não educamos os miúdos para a autonomia. Pressionam-nos para serem os melhores, ai ainda não chega, ainda não chega, mas ao mesmo tempo não os ajudam onde eles na verdade precisam, que é dando-lhes alguma calma e estabilidade. Eu digo isto aos pais que têm a paciência e a generosidade para me ouvirem, mas estou a ficar um bocado cansado de repetir o óbvio.
Mas hoje é tão difícil ser pai e mãe…
Pois é. Dantes a vida era mais simples, embora fosse mais difícil em termos de sobrevivência. Agora, repare, não estou a dizer que dantes a educação fosse melhor. Hoje os desafios são tremendos, tanto para os pais como para os filhos. No outro dia alguém me perguntava se eu achava que devia dar um telemóvel à filha. A miúda tinha 5 anos e na sala dela havia uma data de crianças com telemóvel… Cultiva-se muito a ideia do ‘és o que tens’.
E também têm de estar sempre contactáveis…
Agora anda aí um movimento de proibir os telemóveis. Não sei se concordo. Não sou muito de proibições, acho que nunca funcionam, sou mais por estratégias de autoregulação. Se eles têm um telemóvel, aprendam a usá-lo. E tem de se ter um pouquinho de atenção ao que eles veem. Digo aos meus alunos, vao aos restaurantes e vejam quantos telemóveis são usados como baby-sitters. Claro que os telemóveis são ferramentas preciosas. O telemóvel permitiu-lhe chegar a mim, por exemplo. Mas claro que tropeço em coisas que nme fazem mal e que não gosto de ver. Mas não fico lá.
Mas os miúdos ficam…
É isso que temos de educar. Quando estou com o meu neto mais novo, fico de olho ao que ele vê no telemóvel. Já o apanhei inocentemente a ver coisas deploráveis. Expliquei-lhe que ele não devia ver aquilo. Por enquanto, ele obedece. Mas se eu o proibir, na primeira oportunidade ele vai ver aquilo. Mas como nós nunca vamos poder controlar o que eles veem, temos de ir fomentando a tal autoregulação: educando, falando sobre o mundo, passando valores. Se isso elimina riscos? Claro que não elimina. Mas eles partilham o nosso mundo. Não há zero risco para ninguém. É correndo alguns riscos que se aprende a viver. E é dando o nosso melhor.