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Hoje celebramos o Dia Mundial do Livro Infantil (por ser o aniversário de Hans Christian Andersen). Há anos que ouvimos dizer que as crianças leem pouco e, agora, com o domínio dos telemóveis, o pouco passou a quase nada. Mas será que está mesmo tudo perdido?

1. Não dar a batalha como perdida – Falo com professoras e todas me dizem a mesma coisa: nada está a funcionar, os miúdos não leem, o mundo vai acabar. É verdade que todos nós, adultos e crianças, andamos a ler menos. O mundo mudou para todos. Mas também é verdade é que, quando encontramos um livro que nos entusiasma, a paixão regressa. Por isso, vamos à procura dele? Investigue, fale com amigos, peça sugestões. Para que os livros voltem à vida das crianças, temos primeiro que os deixar voltar à nossa.

2. Perceber porque lemos – Primeira pergunta: afinal, lemos para quê? Porque é tão importante? Eu também não gosto de surf e ninguém me chateia para fazer surf. Porque hei de ler? Primeira resposta: lemos porque a ficção é o que distingue a nossa espécie (isso e rir de piadas parvas). Falo com a Cíntia Palmeira, formadora de educadoras e criadora das Bebetecas em casa, um projeto de literacia familiar para incentivar os pais a lerem aos filhos. Pergunto: para que serve ler? Ela devolve a pergunta: “Qual é a qualidade de vida de uma pessoa que não lê? Nenhuma. A pessoa que não lê não tem investimento simbólico. Sai, vai às compras, vive para consumir. Mas não é capaz de desfrutar um filme, um passeio ao ar livre, um bom livro. Porque o seu mundo interno não se desenvolveu, não tem psiquismo.” Isso é também o que sempre interessou a quem nos governa. Partilhamos ficções comuns, sim, mas não devemos ler tanto que resolvamos, por exemplo, pô-las em causa. “Desde o tempo da caverna de Platão que os homens do poder criam filmes onde as pessoas acorrentadas no fundo das cavernas veem apenas sombras e ficam presas a elas”, explica Cíntia. Era o tablet da altura? (risos) “Sim, era o tablet da altura. Não tenho nada contra redes sociais porque há coisas muito boas, aproximam as pessoas e permitem lançar projetos interessantes. Mas também há coisas muito tolas. Ser leitora permite escolher o que você quer ver, em vez de ficar perdida nos tik toks da vida.”

3. Mostrar-lhes que ler ensina a pensar – Sigo para a minha segunda guru, a professora e escritora Ana Cristina Silva, que há trinta anos ensina futuras professoras e investiga o processo de aprendizagem da leitura e da escrita. “Ler ensina a pensar”, resume. Ou seja, como nós pensamos com palavras, quanto mais palavras tivermos, melhor pensamos, é isto? “Claro. O livro constrói para nós um software mais sofisticado em termos de capacidades cognitivas. A minha capacidade para me pensar a mim e ao outro de uma forma complexa, a empatia, o facto de termos acesso a um registo emocional, ajuda-nos a construir um pensamento mais sólido sobre nós próprios e sobre os outros.” Os livros dão-nos uma riqueza que no dia a dia não temos: “Repara: no nosso quotidiano, temos uma comunicação com os outros relativamente superficial. ‘Vai buscar os miúdos, foste ao supermercado, trouxe uvas’, e é isto. Usamos poucas palavras, comunicamos sobre factos e não sobre emoções e não temos muitas vezes um espaço para refletir sobre as nossas emoções. Ora a boa literatura ajuda-nos a fazer isto.”

4. Perceber o que se passa no país – Segundo um famoso inquérito recente conduzido pela Gulbenkian e pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no último ano, 61% dos inquiridos não leu um único livro. Além disto, 71% afirma que na infância ou adolescência nunca foram levados a uma livraria, a uma biblioteca (77%) ou a uma feira do livro (75%). Quase metade nunca recebeu um livro e mais de metade nunca ouviu ler uma história em criança.  Quando vemos estes números, é preciso lembrar que um livro em Portugal custa 20 euros. Um quarto dos trabalhadores ganha o salário mínimo (e somos dos países da UE com o salário mínimo mais baixo), e em poder de compra estamos na 12.ª posição, atrás de países como a Roménia ou a Lituânia. Há quem diga ‘toda a gente se queixa do preço dos livros mas ninguém se queixa do preço dos bilhetes de futebol’. Mas isso é ser-se profundamente desempático e não perceber que pobreza factual gera pobreza cultural. Seria de esperar que a democratização do ensino significasse mais do que levar mais crianças à escola? “Sim. Mas o que nós vemos em Portugal é que a escola não está a ser um fator de ascensão social, acabando por deixar para trás muitos meninos que serão analfabetos funcionais. E depois tudo isto tem consequências no futuro. Não se pode fixar os bons cérebros, que apesar de tudo sobrevivem, com empregos precários de mil euros e casas com rendas de mil euros, portanto até os bons alunos nós vamos perder.”

5. Passar o entusiasmo pelos livros – É o mais importante mas é aí que, muitas vezes, em casa ou na escola, a missão emperra. “O entusiasmo é altamente contagiante. O problema é que muitas vezes os adultos não gostam de ler. E não podemos dar uma coisa que não temos”, explica Ana Cristina Silva.

6. Escolher bem – É preciso saber escolher livros cativantes para cada idade sem ficar demasiado preso aos clássicos. “A regra é, se os miúdos não estão motivados, temos de motivá-los. Mas eu tenho de gostar de ler para conseguir passar essa paixão! E só depois ir ao registo analítico e ao estudo! Isso atualmente não é pensado, diz-se mal mas não se faz nada para ir buscar os não leitores. Fazem-se muitos projetos mas tudo aquilo acaba por se perder no tempo, por não ser consistente nem integrado em nenhuma rotina.”

7 – Ler em voz alta – Quer os pais quer os professores: porque o ouvido treina-se antes dos olhos. Em vez de mandarem os miúdos fazer fichas, os professores podiam criar de forma sistemática a leitura em voz alta. “Isso aumenta a fluência leitora, o entusiasmo e a compreensão, e não acho muito complicado de pôr em prática. Outra ideia é formar clubes de leitura, que os miúdos também adoram.” Os pais podiam recuperar o momento da leitura ao ir para a cama. Se eu não gosto de ler, raramente pego num livro e o meu filho nunca me ouviu falar de um autor, é pouco provável que lhe passe qualquer tipo de vontade de ir ler. Mas mesmo que eu não seja dada à literatura, há uma coisa que todos os pais e mães podem fazer:  todos podem tirar dez minutos à noite para ler aos miúdos. “Eu sou adepta desses momentos antes de dormir, em que o livro une pais e filhos”, explica Ana Cristina Silva. “E essa ocasião de afeto e de intimidade deve continuar mesmo até aos 10 anos, porque leva tempo até que uma criança consiga ler bem. Isto cria leitores e cria laços. Os livros em casa devem ser separados da escola e dos trabalhos de casa, e devem ser vistos como um prazer e não como uma obrigação.”

8 – Frequentar as bibliotecas – Falámos há pouco no preço dos livros, mas para resolver o drama dos livros caros existem as bibliotecas. Problema: muitas pessoas simplesmente não têm por hábito frequentá-las. Por isso, sugere Ana Cristina Silva, se as pessoas não vão às bibliotecas, as bibliotecas deviam ir às pessoas. “Seria uma boa ideia saírem mais para a rua, irem atrás dos pais, estarem presentes nos mercados, por exemplo. Se as coisas que fizemos até agora não estão a funcionar, é preciso sair da caixa e pensar em alternativas. Mas como tudo isto sai da rotina burocrática, tudo continua como está.”

9 – Aceitar sugestões – Também é democrático que, em vez de a leitura ser uma caminho de sentido único, seja uma troca e uma partilha. Se partilhou com o seu filho um livro que gostou de ler, porque não pedir-lhe uma sugestão de volta? Depois claro: convém lê-la…

10 – Não abandonar a luta – E é só? “Repara, só falei em duas ou três medidas”, lembra Ana Cristina Silva. “Nada disto dá trabalho, não é revolucionário, e são coisas estudadas que têm impacto. Se tivesse de escolher apenas uma medida? Os professores devem começar a aula com 10 minutos de leitura em voz alta, pô-los a ler a mesma história depois, continuar a ler para os miúdos mais crescidos, e os pais podem ler para eles à noite. Sei que mesmo esta única medida para alguns pais é cansativo. Mas experimentem. E lembrem-se: não posso mudar tudo ao mesmo tempo, mas posso mudar pequenas coisas cuja probabilidade de sucesso é elevada.” Eu tenho outras ideias, como uma família que eu conheço onde todos os dias durante 20 minutos toda a gente pára o que está a fazer e cada um lê um livro à sua escolha. Não é uma boa ideia?

Silêncio.

“Não compliques.”

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