Ainda se estava a habituar à cama e já o telefone tocava:
-Então? Estás bem? Não precisas de nada?
Serenou a amiga, ela que não se preocupasse, já tinha sido óptimo emprestar-lhe a casa, ela só queria dormir uma noite descansada, sem telefones, sem as pretensas amigas a lembrarem-se de repente todas dela, a quererem saber tudo, como tinham reagido os miúdos, e se o divórcio ia ser litigioso, e que os homens eram todos iguais e nenhum prestava.
-A minha casa é o sossego total! Desliga o teu telemóvel, toma um calmante e vais ver como dormes a noite inteira!
Enrolou-se no édredon, lembrou-se dos filhos que, naquela altura, deviam ainda
estar diante do televisor, como sempre acontecia quando ficavam em casa dos avós, e sentiu imensa vontade de os ouvir, mas resistiu, depois de tantas noites em claro precisava mesmo de dormir, até a mãe tinha concordado, e jurado não revelar a ninguém o seu esconderijo, e só ligar em caso de urgência.
Estava o comprimido a começar a fazer efeito, e outra vez o toque do telefone:
-Desculpa, só para te dizer que a mulher a dias vai amanhã, mas ela tem a chave, não te preocupes. Tchau, dorme bem!
Dormiria. Dormiria a noite inteira, sem se lembrar das zangas, das palavras injustas de parte a parte, das recriminações, das…
-Filha, sou eu. Não, está tudo bem, eles já se foram deitar. É só para te recomendar que feches bem a porta, e não te esqueças de apagar o gaz! Há bocado deram na televisão um incêndio numa…
A mãe nunca iria habituar-se à ideia de ela ser uma adulta, já mãe de filhos, dona de casa, e que sabia muito bem que…
-Teresa! Vê lá se eu deixei o meu dossier aí na mesa da sala! Como?… Não é a Teresa? E a Teresa, não está?… Ó diabo… E quando volta? Só na próxima semana?! Estou frito… Esse dossier faz-me tanta falta… Por acaso não me fazia o enorme favor de ver se o descobre aí na sala? Deve ter ficado em cima da mesa… Desculpe lá… É um dossier esverdeado…
Arrasta-se como pode pela sala, abre gavetas, fecha gavetas, vê em todas as prateleiras da estante, e nada, e da sala passa à casa de jantar, e da casa de jantar ao quarto, e o dossier não está em parte nenhuma, até que do bocal do telefone rompe um grito, "está aqui! Está aqui! Também, quem havia de dizer que eu o tinha deixado na casa de banho! Esta minha cabeça!", e ela desliga sem ouvir mais explicações, e tem finalmente a certeza de que vai pegar no sono, o comprimido já a faz fechar os olhos…
-Você é amiga da Teresa? É que eu desliguei e nem lhe agradeci o trabalho que você tem! Obrigado e desculpe lá a maçada, está bem? Olhe, por acaso não quer vir jantar comigo amanhã?
Como a Teresa não está, faziamos companhia um ao outro e…
Nem sequer o deixa terminar a frase, as outras é que têm razão, os homens são todos iguais e nenhum presta. E jura que desta vez é que vai mesmo enterrar a cabeça na almofada e…
-Então o idiota do Henrique telefonou para aí? Mas qual dossier, aquilo era para meter conversa contigo! Já lhas cantei das boas! Beijinhos! Dorme bem!
Mas acabou de desligar, e de novo a voz da mãe:
-Desculpa filha, mas ouvi agora na televisão que aí nessa zona…
As palavras da mãe perdem-se no telefone, enquanto lentamente ela começa a despir a camisa de noite, a vestir a saia, a camisola, o casaco, a tirar da mala as chaves do carro e a certificar-se de que trouxe as de casa. Abre a porta da rua e sai devagarinho – não sem antes, evidentemente, ter verificado que a torneira do gaz estava fechada, e ter dado duas voltas à chave.