Foi quando o criado perguntou se queria escolher o vinho, que eles se reconheceram. "Olha o Doutor!", "você por aqui, Artur!", levantaram-se ambos das cadeiras, grandes palmadas nas costas, "você está na mesma, homem!", "bondade sua, pelo Doutor é que os anos não passam!". Voltaram a sentar-se, as cadeiras quase se tocavam, "quem havia de dizer, passados estes anos todos, que a gente havia de se encontrar hoje!", o riso de muitos anos de cumplicidades a escorrer da boca levemente engordurada. Quiseram recordar há quanto tempo não se viam, mas a memória já não era a mesma de outros tempos, de qualquer modo garantiam ambos que, desde que tinham voltado de África, nem duas vezes se teriam encontrado, e mesmo essas nunca tinham passado de breves minutos, quase sempre em bichas às portas do ministério "para tratarem daquelas chatices todas". Mas enfim, murmuraram ambos, "o que lá vai, lá vai", o pior, garantiam, eram as saudades daquela terra, daqueles cheiros, daquela vida.
"O que a gente se divertia, você lembra-se?", "então não me havia de lembrar!", "e quando eu passava à noite lá por sua casa, ó Artur, e a sua mulher toda chateada comigo, porque já sabia que a gente só ia regressar lá pela manhã, e eu, a D. Irene esteja sossegada que o seu Artur está comigo, está com Deus!". Riram ambos muito alto, "a sua mulher nunca me gramou, pois não?", "ó Doutor, a minha Irene até tinha muita consideração por si, não só porque era o meu chefe, mas porque sempre me disse que o achava um cavalheiro, ainda hoje quando calha lembramos esses tempos é sempre o que ela diz: o Dr. Severino era um cavalheiro." O outro ri, sem acreditar, mas também não valia a pena insistir, " a gente divertia-se a valer, ó Artur!, esta gente de agora nem sabe o que isso é!", "lá isso é verdade, Doutor, mas aqui para nós, a D. Emília também não gostava lá muito dessas nossas saídas, que eu bem percebia!". Suspira fundo antes de rematar: "uma santa senhora!", e outro, "ó Artur, você lembra-se daquela miúda que a gente engatou na ‘Gruta’, uma noite em que já tínhamos bebido um bocadito?", "então não me lembro, Doutor, deu-lhe água pela barba, ó se deu, mas valeu a pena, que ela era mesmo uma beleza!", "e você a dizer à minha mulher que ela era sua prima, lembra-se?", "o diabo foi quando a D. Emília encontrou a minha Irene na pastelaria e ela, prima? O meu marido não tem prima nenhuma!". Voltaram a rir muito alto, "a gente agora acha graça, mas na altura não teve piada nenhuma, você lembra-se quando ela depois veio com uma conversa qualquer, que estava grávida, e que só podia ser meu, e que mais isto e mais aquilo?", "ah, mas o Doutor soube dar-lhe a volta!", "pois então, mas o que é que ela queria? que eu cá, posso divertir-me muito, e divirto, mas a família é sagrada, você sabe", "pois sei, Doutor, e comigo também é assim, a minha Irene é uma santa, e tudo o que eu fizer por ela é pouco", "é isso sempre que eu digo, Artur, as nossas mulheres são a nossa força", "isso mesmo, Doutor, isso mesmo." Acabaram o bife, pediram salada de fruta, encheram várias vezes os copos. "Grandes tempos, Artur!", "grandes tempos, Doutor!". Voltaram a encher os copos. "Porque a gente, Artur, pode divertir-se à grande e à francesa sem que isso belisque a nossa vida!", "é isso mesmo Doutor, tem toda a razão!", "e é isso, Artur, que eu estou sempre a explicar aqui a esta!", " e eu também, Doutor, também é o que estou constantemente a lembrar a esta, para ela não me vir um dia com ideias parvas!". Pagaram a conta, levantaram-se, "havemos de combinar um encontro um dia destes!", "pois havemos, Doutor!", grandes palmadas nas costas. "Maria Helena", "Teresa, muito prazer", disseram então as raparigas uma para a outra.
"Ó Artur, você lembra-se daquela miúda que a gente engatou na ‘Gruta’, uma noite em que já tínhamos bebido um bocadito?", "então não me lembro, Doutor, deu-lhe água pela barba, ó se deu, mas valeu a pena, que ela era mesmo uma beleza!", "e você a dizer à minha mulher que ela era sua prima, lembra-se?"