O Senhor Miguel era o feitor que cuidava das grandes propriedades por aquelas bandas. O seu labor diário era tratar do vinho e do gado e, por isso, na sua antiga casa, as cores são inspiradas pelos tons carmins dos vinhos do Dão. O Dionisio, filho do Senhor Miguel, labutava na serração e nunca largava a sua bicicleta. Todos sabiam que estava por casa quando viam que esta repousava cá fora, amparada pelas paredes de granito. Esse é o motivo por que a bicicleta que está hoje dentro de casa não é uma questão de estética – é uma homenagem ao homem que ali viveu.
Estas são apenas duas estórias, de um total de cinco. São cinco casas, cinco vidas a que se prestou homenagem, cinco formas de mostrar o lado mais genuíno de Santa Comba Dão. As Casas com Estória – Boutique Houses são resultado da ideia de uma família, natural daquela cidade, que tem os rios Douro e Dão como vizinhos.
Chegámos tarde, já o sol se deitara há duas horas, mas fomos recebidos como em casa. Subimos as escadas de granito e a chave está à porta, a luz de entrada acesa, o calor a invadir os poros da pequena casa. Na bancada da cozinha, há um bolo feito pela Lena, ovos, farinha, açúcar e a mão certeira de quem sabe o que faz. Há uma garrafa de vinho do Dão à nossa espera e um frigorifico com compotas, fiambre, queijo, manteiga, iogurtes, sumo, leite e ovos, a antecipar o pequeno-almoço do dia seguinte. Quanto ao pão, será deixado à porta de manhã bem cedo, dentro do saco de pano, a carcaça normal, que os sabores são simples e querem-se autênticos.
Estamos no Rossio, o largo antigo de Santa Comba Dão. No dia seguinte, temos oportunidade de falar com Ana, um dos quatro irmãos que fizeram nascer o projeto, e que nos fala sobre aquele lugar. Da área do marketing e do design passou a cem por cento para o projeto, dividindo o tempo entre Lisboa e Santa Comba Dão. “As casas são um pouco a essência do Dão. As pessoas fizeram as suas casas do granito, construíram a sua vida do nada, porque do nada, que é a pedra, nasceu vida. Isso é reflexo do Dão, onde as pessoas do granito conseguiram tirar vinho, alcançar o seu sustento”, conta. Quando as casas ficaram devolutas, em 2018, Ana e a sua família meteram mãos à obra e arriscaram neste projeto de turismo. “Fizemos as alterações no interior das casas, mas quisemos manter o exterior como estava de origem, mesmo as escadas de pedra. Estas casas são já referência arquitetónica e a única alteração que fizemos foi colocar corrimões, por causa de questões de segurança.”
Ana é filha da terra, apesar de ter estudado fora e construído a sua vida em Lisboa. O sangue do Dão corre-lhe nas veias, bem como as memórias da infância passada ali, naquelas ruas, onde andava de bicicleta. “Não queríamos desapagarmo-nos da história das casas. Convivemos com todas as pessoas que lá viveram, faziam parte do nosso dia-a-dia. Acredito que conseguimos, com a decoração, prestar-lhes homenagem. Foram pessoas que fizeram parte da nossa infância e que nós adorávamos.”
A conversa seguiu o seu rumo, na casa do Senhor Miguel, com a salamandra a “puxar” à séria e a aquecer num piscar de olhos a casa de uma assolhada, a que se junta uma ampla mezzanine onde cabe uma cama de casal, uma poltrona que convida à leitura e duas janelas abertas para o Rossio, a praça que era o centro da vida social em outras eras.
Abertas desde 2018, as Casas com Estória são o ponto de partida para a descoberta de uma região que tem muito para dar a quem por lá passa, desde as vinhas ao cantar dos rios Dão e Douro, das queijarias artesanais às oficinas de olaria onde pode experimentar o trabalho do barro, da Barragem da Aguieira e das praias fluviais até aos ares da serra da Estrela e ao charme do Buçaco e do Luso ali tão perto, à ecopista do Dão e aos seus 49 quilómetros que ligam Santa Comba Dão a Viseu, sem esquecer o Caramulo, meta obrigatório para os amantes de automóveis e do ar puro da serra. Quatro estações do ano contempladas num sítio que é o ponto de partida ideal para todos. “Vai-se de férias ou faz-se uma escapadinha no Alentejo e no Douro e o Dão fica um pouco esquecido. Sempre pensámos que não tinha de ser assim, pois tem tantas coisas genuínas, mas para isso era necessário ter alojamento de qualidade”, reforça Ana.
Das cinco casas iniciais, o projeto cresceu e abraçaram um novo desafio, hoje batizado a Loja do Senhor Costa. Trata-se de um edifício central, com fachada em azulejo, em que também somos conduzidos por uma estória antiga: esta era uma antiga mercearia, a única de Santa Comba Dão. Pertencia a dois irmãos que vendiam de tudo, desde tecidos a lãs, sem esquecer os víveres e as bebidas. Depois fechou, o prédio ficou devoluto e, há dois anos, a família de Ana comprou-a e recuperou-a. “Criámos um espaço comum cá em baixo, e cinco quartos, inspirados nos antigos quartos alugados aos caixeiros-viajantes que por aqui passavam. A loja do senhor Costa fornecia toda esta região. Quisemos garantir conforto e simpatia, porque os dois irmãos eram muito educados, daquela educação à moda antiga, e quisemos transpor esse conceito para cá e fazer as pessoas sentirem que estavam a chegar à casa dos avós, até com os lençóis de algodão na cama”, conta Ana. Além disso, na Loja do Senhor Costa servem-se refeições por encomenda e organizam-se eventos.
Certo é tendo as Casas como ponto de partida, há atividades para ocupar-nos durante dias. Desde as quintas vinícolas que podemos visitar – com destaque para a Magnum Carlos Lucas Vinhos, onde tem oportunidade de conhecer alguns dos vinhos mais aclamados internacionalmente desta região.
Obrigatório é pedalar na ecopista do Dão e conhecer Peter, um holandês que gere a Abelenda Bike Rental e que, além de ter disponíveis bicicletas para alugar, assegura transfers para quem se quer aventurar até Viseu mas não sabe o que fazer para regressar ao carro. Quem quiser, pode também levar piquenique – é só avisar a Ana e terá um “farnel” para aproveitar a viagem, numa bicicleta com um pequeno atrelado, e aproveitar uma pista que passa por antigas estações de comboios e praias fluviais.
Para jantar, a nossa sugestão é o restaurante 3 Pipos, situado em Tondela, em que temos oportunidade de experimentar a gastronomia regional da Beira Alta. Com diversas salas em granito, de ambiente informal e acolhedor, os vinhos do Dão têm destaque, bem como os petiscos típicos desta região. E um conselho: vá com bastante fome.
Certo é que, quando regressar a Santa Comba Dão, de barriga cheia, vai sentir-se em casa ao pisar os degraus de granito e enroscar-se nos lençóis para uma boa noite de sono, daquelas que só mesmo uma boa estória, nos dá.