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Fragilidade Branca: porque é tão difícil para as pessoas brancas falarem de racismo. Esta é a tradução literal (‘White Fragility’) do título de um livro de Robin DiAngelo, académica americana, branca, publicado em 2018. Foi-me sugerido, no final da entrevista, por Cristina Roldão, socióloga, professora na Escola Superior de Educação de Setúbal e investigadora no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES). A fragilidade a que DiAngelo se refere tem a ver com a facilidade com que as pessoas brancas perdem a calma e se põem à defesa quando o tema da conversa é racismo. Assim, revela DiAngelo, esta fragilidade protege o status quo racial, mantendo o privilégio branco. “As pessoas brancas dizem muitas vezes ‘eu não sou racista’, mas se pensarmos bem já todos tivemos atitudes racistas nas nossas vidas. Olhando para trás, hoje reconheço isso e não as faria de novo. Assim como a maioria das pessoas. Não foram intencionais ou conscientes, mas ainda assim magoaram alguém. O meu racismo é o resultado de viver numa sociedade em que há racismo na sua fundação. Todos o interiorizámos.” Muita gente acha que não é, revela a autora, porque não defende aberrações como o KKK ou a escravatura, não se ri de piadas racistas e nunca chamou ‘preto’ a ninguém, mas esse é o racismo evidente, sublinha a autora, há, no entanto, o subjacente na sociedade em que nós brancos fazemos parte quando “deixamos, por exemplo, que haja escolas e bairros segregados”.

Mudar de perspetiva
Para DiAngelo, as pessoas brancas devem parar de perguntar ‘será que sou racista?’, e sim questionar-se ‘de que forma é que fui ‘formatada/o’ por conceitos racistas da sociedade em que vivo, e como eles se manifestam na minha vida?’. “À 1.ª pergunta, muitos de nós respondem ‘não’, e nada acontece, enquanto que a 2.ª pergunta obriga a uma introspeção, no que fiz até aqui. Basta olhar à volta e perceber que o facto de as pessoas não se julgarem racistas não acabou com o racismo. Temos de mudar de paradigma, de nos preparar para conversas desconfortáveis porque vamos sair da nossa zona de conforto.”


Deste lado do Atlântico
Podemos argumentar que Robin DiAngelo fala para os americanos, mas ela também diz, num vídeo publicado no site do jornal britânico ‘The Guardian’, que a dificuldade em falar de racismo tem a ver com “o status quo, como funcionam as culturas ocidentais que foram países colonizadores brancos”, como Portugal. Não devemos esquecer que fomos pioneiros no tráfico de escravos no séc. XV, no séc. XVI éramos o principal ‘fornecedor’ europeu de mão-de-obra escrava africana, e que tivemos colónias até aos anos 70 do séc. XX. Isso, como é óbvio, marca profundamente uma sociedade. Por que razão continuamos a olhar para os outros países como os maus da fita e continuamos com: será Portugal racista? Esta é a pergunta que a investigadora Cristina Roldão diz estar farta, “já vai sendo tempo de ultrapassarmos essa pergunta de quem se mantém numa posição de não se envolver ou responsabilizar pelo problema. Já durante a época colonial, com trabalho forçado, com o estatuto do indigenato, que dividia as pessoas em diferentes níveis de ‘civilização’, Portugal perguntava-se ‘será que somos racistas? Os outros são mais!’. Esta eterna comparação, na busca de que os outros sejam piores é uma maneira de entrar na conversa já saindo dela”. Há quem argumente que a Constituição e a legislação proíbem manifestações de racismo, e é verdade… eppur si muove, e no entanto ‘ele’ anda por aí: a violência policial sobre Cláudia Simões, as ofensas ao jogador de futebol Marega e os assassinatos do estudante cabo-verdiano Giovani Rodrigues e do ator Bruno Candé. E continuamos a questionar-nos, mas o resultado de um dos mais respeitados inquéritos europeus não deixa dúvidas.


A verdade dos números
O European Social Survey de 2018/19, revela que 62% dos portugueses manifestam racismo. A questões como ‘Há grupos étnicos ou raciais que são mais inteligentes? Há grupos étnicos ou raciais que são mais trabalhadores? Há culturas, por natureza, mais civilizadas que outras?’, houve 62% de portugueses que concordaram com pelo menos uma delas. Só 11% discordaram com todas as crenças racistas.
Como é que mudamos esta realidade? Para Cristina Roldão, alguns dos problemas estruturais da sociedade portuguesa em relação ao racismo “têm a ver com a chamada política colorblind, que é, ‘eu não falo de raça nem sobre grupos étnico-raciais ou racismo porque temo que isso possa gerar mais racismo’. Quando o que acontece, noutras situações de violência, como a de género, é o oposto, temos de falar para perceber o que está a acontecer, e tentar solucionar. Por isso, há que romper com um certo pacto de silêncio por recear ‘abrir uma caixa de Pandora e sabe-se lá depois o que vai acontecer’. O que vai acontecer é falar sobre direitos, igualdade, confrontar com histórias da nossa vida, umas positivas e outras menos. Depois, há também que ceder o ‘lugar de fala’, em que os grupos, que estão numa posição de privilégio, cedem o seu espaço para que o outro possa falar. Felizmente tem havido mudanças, há 10 anos, numa conferência sobre racismo não haveria um único negro à mesa, agora já não é assim. Não estou a dizer que as pessoas brancas não possam falar sobre racismo. Não podem é ser os únicos, nem falar sem se confrontar com quem vive o racismo de forma mais direta na pele”.

Quengas e chulos
“Há uns anos, na turma do 5.º ano dos meus filhos, uma professora irritada com a turma gritou ‘vocês raparigas vão ser todas umas quengas e os rapazes uns chulos’. O meu filho, que era delegado de turma, dirige-se à professora e diz-lhe que ela não tinha o direito de lhes chamar nomes, ao que ela responde ‘cala-te ó preto que nem para chulo dás. Além disso és adotado e os teus pais vão abandonar-te’. Só soube deste episódio porque a minha filha veio perguntar-me de mansinho o que era uma quenga. Só depois de muito insistir é que soube da história toda e fui fazer queixa à diretora de turma, claro. A professora não voltou a lecionar naquela escola.” Mas não é só na escolaridade básica que há racismo.

Escrever em ‘pretuguês’
Sara Gomes é médica e conta-nos como até na faculdade não escapou a comentários racistas, “talvez tenham sido essas experiências que mais me marcaram a nível pessoal. Não pela agressividade das mesmas, mas por se tratar de pessoas que como professores/tutores talvez colocasse num certo pedestal. Já me mandaram para a minha terra, claro. E eu respondi que a terra era Portugal. Mas o que mais me deixou estupefacta foi escrever uma história clínica e ao entregar a uma professora ela pergunta-me se estava escrito em ‘pretuguês’. Lembro-me de não ter resposta, de ficar boquiaberta, desiludida. O que revela este comentário além de uma piada de mau gosto? O que separa um episódio de mau timing de comédia de uma microagressão? Outro caso que aconteceu, foi quando um professor que já fazia piadas sobre a minha sabedoria em doenças infecciosas (eu como preta saberia mais sobre o tópico), após um longo questionário das minhas origens, após não aceitar que a minha nacionalidade era portuguesa, e saber que os pais nasceram na Guiné-Bissau, desaparece da sala e regressa com um indivíduo da minha cor já em idade avançada e diz ‘vá falem, podem falar das vossas coisas’.”


Educação antirracista
A escolaridade obrigatória é uma das áreas que deveria merecer mais atenção por parte de quem quer promover uma sociedade sem racismo, mais igualitária. Porque embora o direito à educação não seja discriminatório, há situações que se repetem e é preciso fazer mudanças. Cristina Roldão sugere algumas:
• Manuais com multiperspetivas históricas. Os manuais atuais continuam a não se debruçar sobre a violência do tráfico negreiro ou ter a perspetiva de quem foi colonizado. “Isto tem impacto nos jovens negros afrodescendentes ou ciganos, mas também nos jovens brancos que, sem se aperceberem, estão a construir uma imagem do mundo em que eles estão sempre no centro, como conquistadores, e os outros grupos étnico-raciais veem-se ausentes, desvalorizados nestas narrativas. Os manuais de História têm uma legitimidade que outros livros não têm. Se falamos no racismo da Alemanha nazi, no Apartheid na África do Sul, porque não se fala do racismo no colonialismo português? A ideia de que foi mais brando que o dos outros povos perdura.”
• “Maior representatividade étnico-racial nas escolas: corpos dirigentes, professores, auxiliares… Isso cria um maior hábito de convivência na diversidade. Não vale a pena dizerem ‘todos diferentes, todos iguais’ para depois todo o corpo de decisão ser branco. Tem de haver uma ancoragem no real. E para isso é preciso haver uma política ativa de cotas.”
• “Acabar com a segregação nas escolas. As escolas que servem os bairros de realojamento, sobretudo na zona metropolitana de Lisboa, onde ficaram concentradas as populações negra e cigana, recebem alunos que vêm de um contexto social desfavorecido, e por isso não são escolas que promovam a igualdade. Esses bairros foram construídos no séc. XX, foi uma decisão política, já se sabia que estavam a formar guetos.”
• “Haver formação de professores contra o racismo. Para saberem lidar com problemas raciais na turma ou com encarregados de educação, que livros antirracistas adquirir para a biblioteca. Não temos políticas que promovam o racismo, mas não vamos evoluir se não houver políticas antirracistas. Não basta dizer ‘não sou racista’, temos de dizer ‘sou antirracista’”, remata Cristina Roldão.

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