Helena Magalhães é uma das novas vozes da literatura em Portugal, e em ‘A devastação’ (Ed. Suma de Letras, E17,45) faz o relato de uma experiência traumática e reflete sobre o poder do patriarcado mas também fala da importância das amizades femininas.

Em ‘Devastação’ abordas um tema muito pesado e uma experiência muito sofrida. Falaste com alguém que tivesse passado pelo mesmo, fizeste algum tipo de investigação?

 ‘A Devastação’ começou por ser um livro inspirado na história da minha mãe, que cresceu num orfanato da igreja no Alentejo. Falamos do contexto de tantas famílias portuguesas nos anos sessenta: a pobreza, a falta de recursos e o poder patriarcal. A minha avó acabou a ter nove filhos, tendo sido as raparigas enviadas para lares da igreja quando se viu sozinha e sem forma de as criar, uma dor inimaginável que também tentei transpor para este livro. Cresci a ouvir as histórias que a minha mãe me contava sobre a sua infância, sobre as privações, os abusos físicos e emocionais e o impacto que uma vivência naquele contexto teve nela. Ao mesmo tempo, ela falava-me dos laços criados com as outras raparigas do lar com quem cresceu, a forma como aquela união entre elas era moldada pela dor comum e esse foi o ponto de partida para este livro. Eu queria escrever sobre o patriarcado português, este legado que carregamos até hoje, mas queria sobretudo abordar o tema de uma infância sofrida mas que também trouxesse alguma esperança. Que independentemente das devastações que a vida nos traz, temos sempre forma de nos reinventarmos. Comecei a escrever A Devastação em 2019 e a dada altura fez sentido transformar esta ideia na história da Mar (personagem secundária do Raparigas como Nós) pelo carinho com que os leitores ficavam pela sua evolução ao longo do outro livro. Passei os últimos anos a estudar o patriarcado português e a violência nos lares da igreja (não só em Portugal, mas em toda a Europa) e espero ter conseguido passar com respeito e empatia as histórias de tantas raparigas e rapazes que cresceram neste contexto.

Pensamos que tudo já está mais seguro, mas o mundo ainda é um lugar perigoso para as mulheres, de várias maneiras, não é? Que marcas de machismo ainda notamos mais no nosso dia a dia?

 O machismo está tão presente no nosso dia-a-dia, até nas coisas mais banais e do quotidiano. O que eu noto é que na maioria das vezes já temos uma visão tão condicionada que nem nos apercebemos disso. São sequelas da nossa educação e de toda a cultura que nos formou enquanto seres humanos e eu também quis trazer isto para este livro. O narrador não condena ou tece opiniões sobre nenhum dos homens, torna-os o resultado da sua educação e cultura, e deixa que seja o leitor a refletir. Este legado patriarcal ainda está muito presente em Portugal. Somos um país que só saiu da ditadura há cinquenta anos, ainda vivemos com essa bagagem cultural e educacional. Há temas mais discutidos: as diferenças salariais gritantes, a falta de representatividade feminina nas mais diversas esferas, a violência doméstica que em Portugal continua a ter uma prevalência aterradora, mas as mulheres continuam a ter menos oportunidades, menos voz e menos espaço. O assédio sexual nunca foi tão discutido como agora, o que já um passo enorme na nossa sociedade conservadora, mas os resultados ainda são pouco palpáveis. Por exemplo, nenhuma queixa de assédio na Faculdade de Direito de Lisboa, que inundou as notícias no início deste ano, seguiu para tribunal. Todos os inquéritos foram arquivados ou prescreveram. O assédio ainda é silenciado, os relatos de abusos sexuais na Igreja têm sido escandalosos mas ainda estamos no início desta conversa, e a nossa sociedade continua a proteger e a favorecer os homens. A violência doméstica é um problema grave em Portugal, mas são as mulheres que têm de sair de casa e procurar abrigo e proteção, a responsabilidade recai sempre sobre as mulheres e, em consequência, as mulheres continuam a silenciar o machismo como forma de se protegerem.

A tua escrita está a tornar-se mais densa e sólida. Foi consciente ou uma coisa que simplemente aconteceu?

 É muito bom ter esse feedback. Acredito que seja uma evolução natural de todos os escritores e, pessoalmente, gosto de me desafiar. Nos outros livros ainda não tinha muita confiança na minha voz, inconscientemente talvez tenha sempre ido pelo caminho mais seguro. Neste livro senti mais liberdade para explorar a minha escrita e a minha forma de brincar com as palavras e com a narração. Sinto também que a língua portuguesa permite-nos escrever com um ritmo e uma profundidade únicos e quis tirar partido disso para que a história também tivesse um ritmo de leitura que envolvesse o leitor, que lhe tocasse nos sítios certos nos momentos certos.

Achas que há um certo tipo de preconceito contra as vozes mais jovens da literatura portuguesa?

Infelizmente, sim. Já noto algumas mudanças, muitas até, e o mercado português também caminha para uma democratização literária, um reflexo das tendências internacionais. Mas em Portugal ainda há poucas oportunidades para as vozes mais jovens. Continuamos a ser relegados para um patamar inferior, difundido e defendido por muitas camadas da indústria dos livros. A nossa voz é considerada fútil e vazia, ainda se grita que não há bons novos escritores, que se imprimem livros, não se escrevem. Somos um país avesso à mudança e isto também se reflete na literatura, onde estamos agarrados com unhas e dentes a paradigmas antiquados, defendemos que a última geração de bons escritores nasceu nos anos 70, silenciamos violentamente as novas vozes e depois queixamo-nos por sermos o país da Europa com a menor taxa de leitura quando somos a causa e a consequência disso mesmo.

Porque é que achas que se lê tão pouco em Portugal?

 Este é um problema que se estende por várias camadas. Os livros são caros, mas são caros porque se vende pouco e as tiragens são muito baixas. Não há diluição de custos, o que é difícil de contornar. Mas isto também vem agarrado a uma visão conservadora e arcaica de que a literatura é uma arte superior que não pode, nem deve, chegar às massas, o que faz com que não haja uma promoção ativa da leitura. O mercado até há pouco tempo estava estagnado no mesmo tipo de livros e autores que se publicavam nos anos 90, não havendo interesse em publicar para as novas gerações (a geração que tem hoje 20, 30 e 40 anos) e isso também teve impacto na sociedade. Portugal é o país com menos educação da UE, apenas 52% da população portuguesa neste momento concluiu o ensino secundário e estamos cerca de 26 pontos percentuais abaixo da média da UE. Isto também espelha problemas mais profundos, continuamos a ter um PIB mais baixo do que a média europeia e elevados níveis de pobreza, exclusão social e abandono escolar. Quanto menos livros se venderem, mais caros vão ser e de acesso cada vez mais exclusivo a um nicho da população. Acho que as redes sociais vieram fomentar mudanças avassaladoras que também já são visíveis em Portugal e que obrigaram o nosso mercado a pensar de forma diferente e isso já se reflete: grande parte dos sucesso de vendas são hoje de autores contemporâneos e/ou para um público mais jovem (ainda que Portugal continue a questionar a sua qualidade nesta luta insana por uma literatura mártir que está a ser extinguida) e estes autores contemporâneos (portugueses e internacionais) são quem está a criar novos leitores e a trazer uma lufada de ar fresco a um mercado que estava em crise. Eu acredito nos livros enquanto fomentadores de mudanças na sociedade e acredito nas histórias que falam para os leitores de hoje.

  Fazes parte do Clube das mulheres escritoras. Isso ajuda-te?

A luta das mulheres escritoras em Portugal é um tema que tem pano para mangas. O mercado continua a ser dominado por escritores homens, o que não é assim tão inusitado, o nosso legado literário e cultural foi pavimentado por homens. E as oportunidades para as mulheres na escrita em Portugal têm sido muito precárias. Sinto que há mais valias numa união, quando uma mulher vence, todas vencem, as oportunidades aumentam, as portas abrem-se, os lugares nas estantes das livrarias destinados às mulheres escritoras alargam-se um pouco mais. Um clube pode parecer uma brincadeira mas é uma forma de defender e promover o impacto das vozes femininas na ficção literária portuguesa do futuro.

Para quem não sabe e não te conhece, explica o que é o Book Gang.

 O Book Gang é um clube de leitura, livraria e subscrição mensal criado por mim em 2019 com o objetivo de incentivar à leitura de livros escritos por mulheres e de criar novos leitores. Todos os meses as pessoas recebem a sua box mensal de novidades com a minha curadoria, leem em conjunto, descobrem livros e novos autores, apaixonam-se cada vez mais pela leitura. Começou por ser um hobby mas tornou-se toda a minha vida e o meu trabalho a full-time. Tem sido uma oportunidade de dar a conhecer novas autoras portuguesas e de fomentar mudanças em Portugal, estou muito grata pelo impacto que o Book Gang ganhou, mudou toda a minha vida.

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