Madrasta. Estamos nos anos 20 do século XXI e a palavra, quando a dizemos em voz alta, continua a parecer espinhosa. Quase que pica. Fomos procurar a definição no Priberam. Primeira definição: esposa ou companheira do pai, ou da mãe em casais do mesmo sexo, em relação aos filhos por eles tidos em relacionamento anterior. Segunda e terceira (vá lá, avisa que é depreciativa, se tivesse aqui o emoji do ‘revirar os olhos’ era esse que aqui colocávamos): mãe que não cuida bem dos filhos; mulher má.
‘Sorte madrasta’, ‘Vida madrasta’, ‘Para madrasta só o nome lhe basta’, ‘Uns são filhos, outros enteados’… Até os contos infantis reforçam a ideia da madrasta ser uma pessoa má, vil, e é sempre a antagonista da história: a madrasta da Branca de Neve manda-a matar porque um espelho mágico diz que a princesa é mais bela que ela; a madrasta de João e Maria (ou, como muitos ainda conhecemos, ‘Hansel e Gretel’) abandona os enteados no meio da floresta porque não há comida suficiente para toda a família; e a madrasta da Cinderela obriga-a a uma vida de escravidão doméstica, favorecendo as suas próprias filhas (mais feias e más, por oposição à beleza e virtuosismo de Cinderela). Não admira que cresçamos a tremer perante a ideia de ter uma madrasta.
A REALIDADE DOS NÚMEROS
Longe vão os tempos em que no nosso país quem se casava pela Igreja não se podia divorciar. Longe vão os tempos em que a falsa moralidade de um regime ditatorial condenava ao obscurantismo as segundas famílias para que tudo parecesse ‘moralmente no lugar’. Depois do 25 de Abril, felizmente, as pessoas conquistarem o direito a refazer as suas vidas, ao amor, à felicidade, podem voltar a casar ou viver em união de facto. No entanto, a nossa cultura está cheia destas referências negativas a um papel social – o da madrasta, o do padrasto não – que é absolutamente essencial, normal, e está a aumentar. Vamos a números? Em Portugal, em 2011, existiam 105.763 casais recompostos, já em 2021, segundo dados do INE, os núcleos familiares reconstituídos aumentaram para 124.714. São muitas as famílias em que há o famoso ‘os meus, os teus e os nossos’, e é preciso encarar isso com normalidade, sem más da fita ou vilãs antecipadas.
Uma Grande Família
Se ainda não viu esta série sueca – está na plataforma de streaming Netflix – aconselhamos vivamente. Aqui se retrata com graça e leveza mas também com muita seriedade a realidade de muitas famílias recompostas, o desafio de relacionamentos com os respetivos ex, o desafio de conviver com os filhos dos primeiros casamentos, o desafio do convívio com os novos companheiros dos ex, o desafio do relacionamento dos filhos dos primeiros e segundos casamentos, a logística de integrar isto tudo no dia a dia, nos dias complicados de trabalho… nos papéis que cada um tenta, à sua maneira, cumprir, gerir ciúmes de todos os lados, sentimentos de injustiça, de abandono, de falta de atenção. É claro que sendo uma série sueca é tudo mais contido do que se fosse espanhola ou italiana, ou mesmo portuguesa. Mas é impossível não sentir alguma ligação com aquelas personagens, mesmo que não estejamos numa situação idêntica. Basta imaginarmo-nos, à distância, projetarmo-nos e pensar que pessoas seríamos. Às vezes, basta fazer isso para que não haja uma escalada em qualquer situação potencialmente conflituosa.Vamos ‘ouvir’ umas histórias com final feliz?
Enteadas, madrastas e avodrastas
Luísa tinha 14 anos quando a mãe faleceu. Depois de uma longa luta contra o cancro, ficou sozinha com o pai e o irmão mais novo. Durante o tempo da doença da mãe, via que o pai se esforçava para apoiar a mãe no que ela precisava. “Quando ela partiu, fez de tudo para que nós, os filhos, sentíssemos nele todo o amparo e amor possível. Sensivelmente um ano depois, percebemos que ele estava mais ausente, mas nem me passou pela cabeça que ele pudesse ter outro relacionamento. Ele era o pai e estava eternamente ligado à nossa mãe. Foi um dia depois do meu 16.º aniversário que o meu pai decidiu apresentar-nos a namorada. Foi um choque brutal, odiei-a instantaneamente. Para todos os efeitos, aquela pessoa estava ali para substituir a minha mãe e tentei que a vida dela fosse um inferno. Durante um ano recorri à chantagem emocional, fiz birras, gritaria, picava-a… trinta por uma linha, e ela manteve sempre a calma, sempre ponderada. Uma amiga, muito sensata, um dia perguntou-me ‘porque a tratas assim?’, e eu não soube responder. A partir daí a nossa relação melhorou muito, e com o meu pai também, foi um apoio muito importante para ele, é uma pessoa muito carinhosa e atenciosa. E como a vida tem destas ironias, aos 30 anos apaixonei-me por uma pessoa que tinha um filho com 10 anos. Fui ‘buscar’ à minha memória o que a Ana Maria me ensinou sem palavras, mas também a ‘consultei’ sempre que tinha dúvidas se estaria a fazer bem. São relações que se constroem no dia a dia, com amor, atenção e calma. Hoje, temos uma boa relação, a Ana Maria é uma avodrasta fantástica.”
Subitamente, madrasta
Há 8 anos que Susana foi para França trabalhar com o então marido. As coisas não correram bem, separaram-se e cada um foi para seu lado. Dois anos depois, Susana apaixona-se por um belga que tem uma filha de 5 anos com uma dinamarquesa. As nacionalidades são relevantes porque na altura das férias era, e é, um carrossel de viagens entre pais e avós. E Susana no meio. “Fui parar a uma estrutura já oleada que funcionava bem, a dois [mãe e pai], a quatro e a seis (com os avós) e entretanto entro eu, o número ímpar. Nunca pensei em ter filhos por isso tentei não interferir naquela engrenagem, mas à medida que o tempo passava sentia-me cada vez mais incomodada ao ser uma personagem quase figurativa. Ao fim de 9 meses de relacionamento, a vida encarregou-se de nos trocar as voltas. O meu companheiro teve um acidente, ficou hospitalizado e teve de recuperar em casa um mês. E eu fui viver para casa dele. Foi nessa altura que conheci a mãe da Julie que, felizmente, é uma pessoa muito pragmática e não é ‘cocabichinhos’, muito nórdica. (risos) Eu, que era vista pela Julie como a ‘amiga do pai que de vez em quando está lá em casa’, passei a ser uma presença diária, isso fez com que nos aproximássemos muito e embora tivesse ficado um pouco desconfiada no início, muito calada, acabou por perceber que eu queria o bem do pai e o dela. Ia buscá-la à escola, ao ballet, ao cinema, ao parque infantil. Hoje temos uma relação ótima que vai tendo os desafios normais.”
“A página ‘Somos Madrastas’ não pretende pintar as madrastas de santas ou as mães de más, apenas ressignificar esta realidade e a palavra.” Inês Neves Rosa
A história de Inês Neves Rosa
Ser madrasta pode ser um processo muito solitário, porque nem sempre há a possibilidade de ter o conselho e exemplo de outras pessoas próximas. Foi isso que aconteceu com Inês Neves Rosa, de 38 anos, jurista de profissão, mãe de duas crianças de 4 e 1 ano, madrasta de uma menina de 9, e criadora da página ‘SomosMadrastas’ em Portugal. Ela contou-nos, resumidamente, a sua história: “Cresci numa família recomposta, os meus pais separaram-se quando eu tinha 4 anos e a minha mãe refez a sua vida ao lado do meu padrasto. Já com o meu pai, praticamente deixei de ter contato com ele. Teve alguns relacionamentos, inclusive uma companheira que incentivou muito a nossa aproximação, mas nunca chegou a ser minha madrasta porque eu nunca vivi com ele, nem sequer naquela modalidade dos fins de semana alternados. Durante a minha adolescência e juventude, a única pessoa que conheci que era madrasta era a minha mãe, e vi os desafios que a minha mãe teve de enfrentar como madrasta, daí que tenha pensado que nunca na vida quereria aquilo para mim, por ser um papel desafiante e ingrato, muitas vezes. Os anos passaram e fui tendo os meus relacionamentos, mas nenhum dos meus namorados tinha filhos. Quando conheci o Nuno [hoje, seu marido], éramos colegas de badminton, tornámo-nos amigos e nada mais, até porque então eu tinha namorado e ele namorada. Ele seguiu a sua vida e eu segui a minha. Mais tarde, ele tem uma filha mas cerca de um ano depois de ela nascer, separa-se. Por essa altura já eu me tinha separado também, mas sem filhos. Aproximámo-nos, começámos a namorar mas eu só pensava ‘ai, meu Deus, e agora? Avanço ou não? Existe uma criança’, ela era pequenina, tinha à volta de um ano, e eu comecei a lidar com as minhas questões internas, pois toda a vida tinha dito que não queria ser madrasta. Para além da minha história pessoal, tinha formação como jurista, e os casos que uma pessoa vai lendo, as decisões judiciais, faziam com que tivesse uma ideia negativa destes casos de famílias recompostas. Mas ao mesmo tempo não queria desistir daquela relação, por isso falei muito abertamente com o Nuno, abri o coração. Disse-lhe que para avançar tínhamos de ter uma conversa muito séria relativamente ao meu papel na vida da filha dele. Se ele me tivesse dito, ‘olha eu sou o pai, tu ajudas-me e pronto’, eu não teria avançado porque não tenho esse feitio. Seria incapaz de estar a viver com uma criança, constituir a minha família e não ser, ou não desempenhar, um papel de autoridade em minha casa, no sentido de não poder intervir na educação, na orientação. Mas o Nuno teve uma grande abertura e avançámos com o nosso relacionamento.”
Inês nunca tinha namorado com alguém com filhos, por isso foi uma situação que levantou alguns desafios. “Naturalmente, a figura de referência era o pai, para dar a comida, para adormecer, e eu era a retaguarda, a ajudar a fazer as refeições ou qualquer coisa que fosse preciso. Rapidamente percebi que tinha ciúmes e senti-me uma pessoa má, até porque o próprio estereótipo da madrasta é da bruxa má, e é isso que interiorizamos, é a nossa cultura judaico-cristã que nos ensina isso. Felizmente, como fazia terapia, quando me apercebi deste tipo de sentimentos falei nas minhas consultas e percebi que os meus ciúmes se deviam à ausência de figura paternal na minha história pessoal. Eu via a relação bonita do Nuno com a filha e também queria ter tido aquilo. Eu digo isto agora, com esta leveza e facilidade, mas foi um processo bastante difícil, este de compreender como a minha história pessoal, na infância, tinha causado tanto impacto na minha vida enquanto adulta. E fui lidando com todas estas dores muito sozinha, não tinha nenhuma amiga nem conhecia ninguém nas mesmas condições, ainda que com muita terapia.”
“Tenho pessoas a dizer que os sogros lhes dizem que não são madrastas porque as mães não morreram.” Inês Neves Rosa
Somos.Madrastas.pt
Um movimento que deve conhecer
Já Inês tinha resolvido estes dramas na sua cabeça quando, em 2021, descobre a página brasileira ‘Somos Madrastas’. Explorou o site e percebeu de imediato quão benéfico poderia ser e como gostaria de dar início aqui em Portugal. “Falei com a coordenadora do site no Brasil, que se prontificou logo a dar o layout da página, e assim surge o ‘Somos.Madrastas.pt, no Instagram, um movimento que pretende responder às dúvidas de mulheres que são madrastas, mães, dar voz às famílias reconstruídas, ter alguém que as escute, um espaço onde possam partilhar experiências e retirar o peso negativo da palavra. Assim que comecei a fazer conteúdo, foram chovendo mensagens, centenas de mulheres que me diziam estar muito felizes por já não se sentirem sozinhas, nem acharem que são más ou malucas. É muito interessante ver como este tema da ‘madrastidade’ [como há a maternidade e paternidade] ainda é tabu. Um exemplo disso é que não há muitos comentários públicos nos meus posts, mas nem imagina a quantidade de mensagens privadas que recebo. As pessoas não falam publicamente sobre isto, porque receiam que a mãe ou alguém da família vá ver. Não se querem expor mas têm dúvidas e por isso recebo muitos pedidos de ajuda, para eu postar uma questão específica, para que eu possa publicar as reações também de forma anónima.
Há muitas pessoas que me contam as suas histórias e há histórias inacreditáveis, por exemplo, nas escolas, estas instituições ainda não sabem lidar com esta realidade. Uma madrasta contou-me que tinha autorização formalizada para ir buscar o enteado à creche, mas que a educadora lhe arrancou a criança dos braços porque não era a mãe. Outra, que o enteado também quis fazer um desenho para a madrasta no Dia da Mãe e não o deixaram. É uma violência, porque aquelas crianças têm uma boa relação com as madrastas e não percebem por que não o podem fazer. Além da página, há outra coisa que faço, é dar apoio a casais, de forma a orientá-los para a melhor maneira de lidar com algumas situações, tendo sempre em conta o interesse das crianças em primeiro lugar. A página do ‘Somos Madrastas’ não pretende pintar as madrastas como santas, ou as mães como as más da fita, quero simplesmente ressignificar esta realidade e a palavra que tem uma conotação tão negativa, fazer com que mais nenhuma madrasta se sinta sozinha.”