Diz-se que tudo passa rapidamente de moda, mas não é o caso com as crónicas do MEC. Ainda mal começaram e já nos estamos a rir, sobre o que quer que seja. Nada disto envelheceu um dia. Aqui temos o MEC ao mesmo tempo português e britânico, suficientemente próximo para amar os seus conterrâneos e suficientemente distante para lhes esmiuçar as particularidades.
Para quem não era nascido na altura ou estava (muito) distraído, recorde-se que Miguel Esteves Cardoso dirigiu, com Paulo Portas, o jornal ‘O Independente’, fundado em 1988, que ficou famoso, entre muitas outras coisas, pelas crónicas do MEC, agora reunidas pela Bertrand Editora no ano em que Miguel Esteves Cardoso festeja 40 anos de vida literária. Textos que vão de 1988 a 1992, incluem as famosas ‘aventuras’ (a aventura do eu, a aventura da Europa, a aventura de sofrer…) e fazem-nos rir e pensar tanto como da primeira vez que as lemos.
Hoje, ainda somos assim? Assim como o MEC nos retratou? A verdade é que somos. Lemos aquilo, e continua tudo tal qual. Mais pormenor menos pormenor. Porque mais do que meras crónicas, isto é o retrato de uma nação e de um povo. Ora vamos lá recordar: “A nossa compaixão, longe de ser um sentimento puro, é muito semelhante à nossa capacidade para a bisbilhotice”; “Por muito inteligente e instruído que seja um português, diz sempre ‘nunca se sabe’… Somos cientistas com patas de coelho dentro do bolso da bata”; “Muitos dos transportes públicos portugueses podem ser muito agradáveis desde que se respeite uma única condição: é ir uma pessoa de cada vez.” É tudo bom. Aliás, uma pessoa começa a citar e nunca mais acaba. É tudo citável, é tudo absolutamente verdade, é tudo certeiro.
Pronto, como isto é viciante, vamos continuar. Tudo pode ser tema de análise, seja a relação Lisboa-Porto (”A conversa Porto-Lisboa torna-se depressa numa chatice. Conversas sobre o resto do país são bem capazes de ter mais interesse. Em Braga, por exemplo, há muitas pessoas felizes mas não querem que se saiba”) seja sobre notícias (“As pessoas querem ler notícias, mas quando toca a escrever, querem escrever romances”) ou sobre os outros (“O maior problema que se pode ter é a outra pessoa”) ou sobre o que quer que seja.
Rimo-nos mas nem sempre nos rimos. Às vezes, há pormenores tão tristes que deviamos chorar. Há coisas que continuam (continuarão sempre?) tragicamente verdadeiras: “Há uma estranha mas tocante esquizofrenia na nossa sociedade. É a maneira como nos curvamos à frente do poder ao mesmo tempo que o odiamos.” Ou: “Ensinando as pessoas a orgulhar-se de tudo o que fazem, ensinamo-las a serem absolutamente estúpidas. Só quem não pensa não se arrepende. As pessoas já não querem corrigir-se, não pedem desculpa, não procuram melhorar-se ou tornar-se mais suportáveis. Querem ‘experiência’. Querem ‘encontrar-se’. Querem definir, polir, transmitir a sua ‘imagem’.”
Mais do que sobre qualquer outra coisa, o primeiro ‘influencer’ da sociedade portuguesa refletiu sobre o amor. “O amor é para amar. Não deve ser usado como um insuflador de egos”. “Dá o coração e o corpo mas guarda a parte corriqueira da alma”. “Dá tudo a quem amas – tudo o que tens de mais grandioso e belo para dar – menos umas lecas.”
E porque estamos em época natalíca, também vos desencantei umas linhas do mestre sobre o Natal (tipicamente atípicas): “Quando lerem estas linhas, já eu estarei num avião a caminho de sabe-se-lá-onde, obedecendo à nossa antiga tradição familiar de evitar o Natal em família”.
Vão lá festejar, comprem para oferecer ou para vocês próprios, recordem ou tenham a suprema alegria de as ler pela primeira vez, e não se esqueçam de continuar, pela vossa parte, dementes independentes.
‘Indendente demente’ – Miguel Esteves Cardoso, Bertrand, E18,80