Se calhar vocês nunca ouviram falar de Albert Speer. Basta dizer que foi dos poucos altos dirigentes nazis que sobreviveu à queda do império de Hitler, e a quem a posteridade tratou com alguma benevolência em grande parte porque Speer mostrou – ou encenou? – o próprio arrependimento.
Era diferente do estereótipo nazi como uma figura perversa, assustadora e fanática. Artistico, culto e educado, Albert Speer foi amigo íntimo de Hitler, o principal arquiteto do regime – foi mesmo o responsável por remodelar Berlim, pondo em prática a visão grandiosa do seu chefe – e depois ministro do armamento, mantendo a máquina de guerra a funcionar. Mas quando a guerra acabou e o império nazi desabou, mostrou-se arrependido, disposto a rever as teorias nazis, disposto a aceitar a culpa e a cumprir pena. Condenado em Nuremberga a 20 anos na prisão de Spandau, Berlim, ocupou muito do seu tempo a coligir as suas memórias, naquele que havia de ficar para a História com um dos mais importantes testemunhos sobre o nazismo: é este ‘Por dentro do Terceiro Reich’ (Crítica, E25,50)
O seu fascínio é evidente: aqui temos uma testemunha em primeiro grau, um homem que esteve mesmo lá, literalmente e de todas as maneiras ao lado de Hitler. Como afirma o historiador Rui Ramos no prefácio a esta edição, além da curiosidade que temos sobre o mundo privado de Hitler, o grande mistério permanece humano: o que poderia ter levado uma pessoa aparentemente normal – um homem culto, educado, sensível – a ser um apoiante de Hitler? “Speer surge assim como uma espécie de tradutor do nazismo para o mundo pós-guerra”.
Hoje este fascínio permanece, embora seja evidente que o mistério continua um mistério. O livro traz mesmo algum desconforto: afinal, Speer parece-nos estranhamente próximo de cada um de nós. Poderiamos nós ter sido assim cúmplices de um regime que matou milhões de seres humanos? A pergunta não é fácil de digerir.
Claro que hoje conseguimos perceber o que Speer quis fazer: limpar a folha, mostrar-se arrependido ou converso. Mas a verdadeira história é – são sempre – menos simples. “Speer não foi apenas um artista ou um técnico atraído por um mecenas diabólico”, alerta Rui Ramos. “Foi um nazi, que aderiu ao partido em 1931 antes de ser claro que Hitler iria conquistar o poder e fazer de Speer o arquiteto do Terceio Reich.”
Claro que hoje sabemos muito mais sobre Speer, sabemos o suficiente para não nos deixarmos levar pelo seu charme, que permanece até agora. Sabemos que Speer foi nazi, empregador de escravos, apoiante de Hitler, visto mesmo como o seu possível sucessor. Diz-se que, se em Nuremberga soubessem o que se sabe agora, Speer teria sido sem dúvida condenado à forca como tantos outros. Assim, não apenas sobreviveu ao julgamento e à prisão como teve uma carreira de autor e celebridade.
De qualquer forma, o seu livro de memórias continua um dos mais interessantes documentos sobre um dos mais negros períodos da História mundial. Hoje que falamos tanto sobre o regresso da Extrema Direita e o ressurgimento das filosfias nazis, talvez seja útil refletir sobre aquilo de que são feitas, e a atração que podem exercer mesmo sobre seres humanos, aparentemente, ‘decentes’.
‘Por dentro do Terceiro Reich – Memórias’ – Albert Speer, Ed. Crítica, E25,50