Os melhores livros de ‘ficção histórica’, mais do que o espelho do passado, mostram-nos o nosso espelho. ‘A árvore da dança’ (Kiran Millwood Hargrave) não é exceção. E no entanto, nunca temos a sensação de estarmos a ler ‘ficção histórica’: estamos simplesmente a ler uma história.
A coisa passa-se em Estrasburgo. Para nós hoje, Estrasburgo lembra-nos sempre o Parlamento Europeu e homens engravatados. Na altura – 1518 – também era um mundo de poder, largamente exercido pelos homens – o conselho dos 21, que decidia basicamente o destino de todos os habitantes da cidade. Mas a autora vai recuperar um acontecimento verdadeiro para dar vida a uma história que é, sob o manto do passado, uma história do presente.
A linguagem é por si só uma personagem do conto. Ela traz-nos toda a atmosfera de um verão opressivo, do calor abrasador, do Reno malcheiroso, do peso de uma gravidez, do cheiro do medo, do suor, da doçura do mel, do pó da farinha. É a linguagem que nos agarra pelo pescoço assim que começamos a ler, quando ainda nem fazemos ideia do que se passa naquela terra.
O acontecimento que dá o mote ao livro é uma mulher que começa a dançar no centro de Estrasburgo, numa altura em que as pessoas eram totalmente dominadas pela religião e as mulheres levavam vidas ainda mais sacrificadas, submetidas aos maridos, aos pais e à lei dos homens. A esta mulher-dançarina juntam-se aos poucos centenas de outras, num turbilhão que leva o conselho dos 21 a chamar músicos para lhes tirar o diabo do corpo, enquanto elas dançam sem parar durante dias a fio.
Mas a história não é – apenas – a dessas mulheres. Quem seguimos de perto é Lisbet, grávida de quase 9 meses, que já perdeu incontáveis bebés e teme perder mais um. Vivendo com o marido e a sogra, Lisbet nasceu na ‘noite do cometa’ e acha que está amaldiçoada, e que é por isso que perde todos os bebés.
Nesse verão, chega à casa uma mulher estranha: Aghethe é cunhada de Lisbet, irmã do marido, e regressa a casa depois de 7 anos exilada num convento nas montanhas, por um crime de que ninguém quer falar. Nethe volta sem cabelo, cheia de cicatrizes físicas e mentais, mas Lisbet ganha na cunhada uma amiga inesperada. Isso torna- ainda mais curiosa: que crime terá cometido Nethe, do qual ninguém fala?
Aos poucos, a história de Nethe revela-se, a vida da família cruza-se com as mulheres que dançam, e Lisbet conhece os músicos que vêm tirar o diabo da cidade. O desespero das mulheres que dançam serve de coro ao drama que vai aumentando em casa de Lisbet. Agnethe e os músicos vão mudar a sua vida: mas será que vai conseguir com que a sua família sobreviva ao verão mais infernal da humanidade, será que vai conseguir salvar aqueles que ama, será que vai conseguir dar à luz um bebé vivo quando tanta coisa mudou?
Pronto: este é um dos livros mais interessantes e originais que foram publicados até agora, e não se compreende como é que ninguém fala nele. Até porque, a coberto da Estrasburgo do século XVI, fala de muitos temas abordados todos os dias no nosso século XXI: a homofobia, a xenofobia, o racismo, o preconceito, o deixar que outros pensem pela nossa cabeça, a importância do amor como aquilo que pode quebrar todas as barreiras, a esperança num futuro melhor, a capacidade de aprendermos com os outros e de nos tornarmos pessoas melhores.
Tudo isto sem pregar moral, num livro que nos mantém agarrados ao sofá durante o tempo que for preciso até que acabe.
Quando o livro acaba, dá-nos vontade de ler ou reler ‘A letra escarlate’ (será uma boa pós-leitura). E ficamos a pensar como, apesar de tudo, a Humanidade ainda tem tanto para aprender.
‘A árvore da dança‘ – Kiran Millwood Hargrave, Ed. Topseller, E19,95