Raquel tem três desejos reprimidos: ser rapaz, ser escritora e ser crescida. Hoje que as raparigas tem apesar de tudo outra liberdade, isto parece-nos um bocado anacrónico: mas foi graças a livros como este que as coisas mudaram na vida das meninas.
‘A bolsa amarela’ (Lygia Bojunga, ed. Tinta da China) é um dos grandes clássico da literatura juvenil brasileira, e a prova de que nós portugueses somos inacreditavelmente ignorantes do que se publica no ‘país irmão’ é que poucas pessoas saberão da sua existência (mas se calhar estou a ser pessimista).
No Brasil, Lygia Bojunga é vista como a sucessora de Monteiro Lobato (do ‘Sítio do Picapau Amarelo’). Começou como atriz (daí talvez o sentido da coloquialidade nos livros, parece que ouvimos as personagens falarem), escreveu para rádio e televisão e dedicou-se à literatura nos anos 1970. Foi rapidamente reconhecida no meio internacional: basta dizer que tinha apenas seis livros publicados (Os Colegas, Angélica, A Bolsa Amarela, A Casa da Madrinha, Corda Bamba e O Sofá Estampado) quando em 1982 ganhou o ‘Nobel’ da Literatura infantil, o prémio Hans Christian Andersen, sendo a primeira escritora lusófona a recebê-lo e a primeira fora do eixo Europa-Estados Unidos (a segunda seria Ana Maria Machado, só no ano 2000).
Não se ficou por aí, e ganhou em 2004 o Astrid Lindgren Memorial Award, onde continua até hoje a única brasileira premiada.
Lygia Bojunga esteve em Portugal nos anos 80, num congresso da Gulbenkian, e desde essa altura não voltou (mas mais uma vez, posso estar enganada e não me lembrar das outras). O mais estranho nessa altura (e ainda agora), para os portugueses, era a forma de escrever: há uma coloquialidade, um à-vontade de quem não tem medo das palavras, que nós nunca teremos. E no entanto, aborda temas-tabu de que ainda hoje temos medo, e de que ainda hoje fugimos, principalmente na literatura infantil: a morte, o suicídio, o assassínio, o abandono materno, por todos esses passou.
Este ‘A mala amarela’ não é tão dramático mas continua um dos seus livros mais célebres. Surrealista, mágico, pouco preocupado com as convenções, foi publicado pela primeira vez em 1976, e tem uma alegria de contar, uma ligeireza, uma mestria que nos faltam. Aqui fala Raquel, que gostava de inventar histórias, mas de quem toda a família se ri por ser imaginativa. Um dia, recebe uma mala velha que uma tia não quis, e a mala torna-se esconderijo dos seus desejos, das suas angústias e da sua imaginação. Nunca se sabe muito bem o que é inventado e o que não é, e isso não interessa nada: realidade e fantasia convivem bem no mundo de Raquel.
Dentro da mala se encontram o sábio galo Afonso, uma guarda-chuva menina que fala uma língua de guarda-chuva que ninguém entende, um alfinete de fralda que não serve para nada e serve para tudo, o galo Terrível que ganhou 130 brigas e precisa de ganhar outra, a Loja dos Consertos onde todos fazem tudo, e muito mais. Inventando para fazer sentido do real, Raquel consegue afirmar-se e descobrir o seu lugar, mesmo que não seja o mesmo lugar de todos os outros.
Em Portugal, encontrei apenas edições antigas de ‘Corda Bamba’ e ‘Nós três’ , mas quem quiser começar uma viagem inesquecível ao mundo de uma das maiores autoras mundiais, pode investigar na Amazon espanhola, onde estão à venda as edições em português.
‘A Bolsa amarela’ – Lygia Bojunga, com ilustrações de Marie Louise Nery, Tinta da China, E14,00