Vocês não sabem, mas eu sou uma grande comodista. Também sou muito preconceituosa. Pelo menos com os livros. Quer isto dizer que, ponto 1, com a idade vou tendo cada vez menos paciência e há cada vez mais livros que não me interessam nada, e ponto 2, quando toda a gente me diz que um livro é muito bom, não o leio.
Isto para me desculpar de só agora ter pegado em ‘Misericórdia’. Como toda a gente sabe, no ano passado arrecadou todos os prémios que havia para arrecadar, incluindo o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, o Prémio Urbano Tavares Rodrigues, o Prémio do PEN Clube Português (ainda aí estão?), o Prémio Fernando Namora e o Prémio Médicis.
E eu olhava para ele arrumadinho na sua estante a ressonar e pensava assim: ‘Tenho de o ler’, e como é hábito, nunca mais.
Lídia Jorge é um dos ‘monstros’ da literatura portuguesa (perdoem o termo mas é no bom sentido). Uma coisa que acontece muito com os Monstros da literatura é que recebem todos os prémios e são monstros e tal, mas depois não são tão lidos como merecem até que nos obriguem a lê-los na escola.
Não tenho estatísticas mas parece-me que é o caso (bem, ainda não nos obrigam a lê-lo na escola). Vi pouca gente chegar a mim e dizer-me ‘tens de ler isto!’
Ainda por cima, o tema não era de molde a entusiasmar ninguém. Se vos dissessem, ‘Ai é sobre uma velhinha que está num lar’, vocês iam ler? Iam? Vocês são pessoas muito estranhas. Aliás nem se percebe bem o que é que a capa tem a ver com o que leva dentro, mas enfim, a uma capa bonita perdoa-se tudo, até a incoerência.
Bem, um dia já não tive por onde fugir e comecei finalmente a ler. Pensando para comigo e para com os meus preconceitos, deixa cá ver o que é que isto tem de tão extraordinário.
Pronto, só vos digo uma coisa, ainda que me repita: vão lá ler isto.
Na verdade, é mesmo sobre o dia a dia de uma velhinha num lar. Aliás, o livro é inspirado numa figura real, a própria mãe da escritora. Foi mesmo uma ‘encomenda’: foi ela que pediu à filha que o escrevesse, antes de morrer. E a filha cumpriu. Claro que, como a própria Lídia Jorge afirmou, isto não é uma transcrição absolutamente realista, é um livro onde a realidade e a ficção se misturam, mas isso, como também afirmou, só lhe interessa a ela, filha. Nós leitores não sabemos onde começa uma e acaba a outra, nem temos de saber.
E na verdade não sei porque é que vos conto isto, se não interessa nada. Tantas linhas para vos dizer que este é um dos livros mais apaixonantes que li em toda a minha vida (e olhem que eu já li mesmo muitos). E é tanto sobre uma velhinha num lar como a ‘Montanha Mágica’ é sobre um tuberculoso num sanatório. Quer dizer: na verdade é (são). Mas os espaços fechados e a escrita encantatória transformam-nos em metáforas da humanidade e do fim da nossa vida. Em ambos o fantasma da morte torna o dia a dia mais intenso e muito mais outra coisa que apenas o dia a dia.
Lídia Jorge dedica o livro, além da mãe, ao escritor Luis Sepúlveda, também ele levado pela Covid. Aliás, um dos ‘encontros’ mais comoventes do livro é o destas duas almas, mediado por um leitor que se torna uma luz na vida de alguém que se apaga mas que se recuasa a partir de modo apagado, mesmo quando já nem consegue mexer as mãos para bater com a colher no prato.
O facto de ser um espaço fechado numa vida que se acaba dá a tudo uma intensidade que às vezes é quase alucinatória. Como a própria narradora nos conta, “Eu penso que tudo entre nós é mais comovente porque sabemos que tudo o que acontece, acontece pela penúltima ou mesmo pela última vez.”
Aqui seguimos os últimos dias de D. Maria Alberta (Alberti para os amigos), passando pelas diferentes mãos das diferentes cuidadoras, a invisibilidade que aumenta, os diálogos com a noite que ela odeia, os residentes que entram (e que ela vê ‘sair’), a filha que ‘faz amor com o Universo’ e que ela despreza por não ser suficientemente forte, o genro que a visita cheio de ideias e de boa vontade mas que não a percebe, o rapaz leitor que lhe traz a alegria das palavras e que ela não esquece, a cuidadora preferida, a muito jovem Lilimunde, grávida e abandonada pelo namorado, as formigas assassinas, o saco de pano onde ela guarda as suas coisas mais preciosas, um sofrimento comovente pontuado por momentos de esperança, a fome, e finalmente a chegada da pandemia.
Mas não é pela ‘história’ que vou convencer-vos a ler, porque história na verdade não há, ou há muitas. Aqui se prova como as pequenas coisas têm o tamanho do universo (como a própria Alberti nos ensina).
Têm mesmo que pegar nele para perceberem como é bem escrito, como é comovente sem ser lamechas, como é tristíssimo sem ser desesperante, como é duro sem ser dramático, como consegue ser ao mesmo tempo real e poético. Comecem já. Confiem em mim. Não se vão arrepender. Preparem-se para uma experiência que vai mudar a vossa vida. Nos tempos que correm, não há assim tantas.
‘Misericórdia’, Lídia Jorge, Ed. D. Quixote, E21,90.